De início, “convém lembrar que o
direito sempre se apresentou como ‘universal’, ‘abstrato’ e, portanto,
ahistórico” (Neto, 2007). Responsável por direcionar as condutas individuais e
coletivas, o Direito sempre buscou manter uma neutralidade diante dos conflitos
e sujeitos de direito. Contudo, por muito tempo este mesmo sujeito de direito
tinha um perfil: “homem, adulto, branco, proprietário e são” (Duprat, 2007).
Eliminando-se assim grande parte da população: negros, mulheres, indígenas e
comunidades tradicionais como os quilombolas, seringueiros, ribeirinhos, entre
tantas outras.
Atentando-se as sociedades
indígenas, desde os tempos da colonização, estas são menosprezadas e
marginalizadas. Políticas indigenistas abusivas e que inferiorizavam o homem
indígena sempre foram legisladas de forma natural e muito tranquila pelos
governantes. A escravização indígena, pouco comentada e muito sonegada até os
dias atuais, foi uma realidade profunda e terrível, com uso de “guerras justas”
para justificar tais atos vis. A colonização ao contrário do que é descrito nos
livros didáticos, foi construída sim, com o uso de muito trabalho e escravo, de
muitos povos indígenas subjugados a tirania portuguesa. “Contraditória,
oscilante e hipócrita”, para Perrone-Moisés(1998), esses são os adjetivos das
políticas indigenistas coloniais, que poderíamos dizer que se apresentam até
hoje.
Assim sendo, este “caráter ineficaz
ou francamente negativo das leis” (Pérrone-Moisés,1998) perdurou durante todo o
século XIX. As políticas indigenistas não melhoraram em nada. Pelo contrário,
na Constituição de 1824, para se ter uma ideia, não há nenhuma menção sobre os
povos indígenas, deixando sob responsabilidade das províncias legislarem sobre essas
comunidades. O que não é preciso ser nenhum estudioso da história para imaginar
que foi um caos generalizado. Principalmente por dois fatores: primeiro, a
questão agora era de terras e não mão-de-obra como anteriormente e, segundo, o
século XIX é completamente heterogêneo. Este século começa no final da colônia,
passa pelo império e termina no começo da república velha.
Vale ressaltar que até a Constituição
de 1988, sempre tutelados pelo governo, os povos indígenas continuamente foram
taxados de incapazes e infantis, sendo papel governamental integrá-los a
sociedade.
Na República Velha, “preocupados”
com os povos indígenas, a criação do SPI[1] vem para trazer alguma
solução ao que fazer com estas comunidades. Menos agressivo teoricamente, era responsabilidade do
órgão federal “dar-lhes condições de evoluir lentamente a um estágio cultural e
econômico superior, para daí se integrar a nação” (Gomes, 1991). Mesmo
passados, na época, 430 anos, o conceito de “selvagem” e pueril do indígena,
ainda persistia.
A criação da FUNAI na ditadura
militar veio para “resolver a questão indígena de uma vez por todas” (Gomes,
1991). Bem, podemos perceber que isso não aconteceu. Nem para o mal, nem para o
bem. Talvez o único papel da FUNAI em tempos ditatoriais foi estabelecer que as
terras indígenas, que antes teoricamente,
eram deles, passavam a ser um bem da União. Ordem que vale na atual
Constituição de 1988.
Pois bem, século XX, Guerras
Mundiais, Ditaduras. Podemos resumir esse período em duas palavras: conflito e
revolução. O mundo vive uma reviravolta de embates, tensões e manifestos.
Movimentos esquerdistas, minorias marginalizadas, vão à luta! Dessa forma, após
tantas mobilizações, Declarações, Convenções e Constituições foram
estabelecidas “na tentativa de estabelecerem políticas pertinentes e
respeitosas” (Beltrão, 2008).
No Brasil, a promulgação da
Constituição de 1988, a que estabelece nossas diretrizes vigentes é um exemplo
de reconhecimento às minorias por tanto tempo marginalizadas. Ou poderia dizer:
Sempre? Ainda?
Inovadora, suas políticas pautam na inclusão e reconhecimento da
multiculturalidade brasileira. Ou seja, assume que dentro do Brasil há Brasis
com diferentes olhares, pensamentos, crenças, lógicas. Diferentes culturas! Povos “que o direito preexistente à
Constituição de 1988 não os contempla; ao contrário, sequer se apresentavam
sujeitos em face dele” (Duprat,2007).
Assegurada a pluriculturalidade brasileira em sua Constituição,
entende-se que as particularidades culturais e etnológicas sejam levadas em
consideração nos desdobramentos jurídicos. E o que vemos, infelizmente é o
oposto disso. Vemos operadores do direito despreparados, esquecendo-se que o
Direito, com suas raízes puramente culturais, devem zelar pelo coletivo e pela
pluriculturalidade, pois é Constitucional. Está lá em nossa Constituição! Nós conseguimos!
Deve ser levado em conta, que as comunidades indígenas possuem
também sua forma de ver o Direito e possuem seu próprio direito. Possuem sua
lógica, seus regulamentos, sua política e costumes e agora, finalmente,
constitucionalmente, estes parâmetros serão ou deveriam ser levados em
consideração!
É aí que vem a grande importância da Antropologia, que tem como papel fundamental compreender as
particularidades dos diferentes sistemas culturais. Essa compreensão é
importante para que os operadores do direito possam cumprir seu papel de
maneira exata e justa. Distanciando seu olhar sempre tão etnocêntrico, e
aproximando-se de um ponto de vista mais pluricultural. É necessária uma maior
sensibilidade dos operadores do direito que a Antropologia saiu das discussões
acadêmicas para a praxi jurídica. E
ela é crucial para o reconhecimento e a concretização das definições
constitucionais brasileiras. O direito deve dar o direito do direito a todos e
não continuar a reduzi-lo a um grupo minoritário dominante. Isso agora, felizmente, é inconstitucional.
Para concluir, infelizmente, todos os direitos estabelecidos pela
Constituição de 1988, que provavelmente sendo considerados “demais” pelos
governantes, aos poucos vão sendo “ressalvados” ou criam-se Emendas
Constitucionais que regridem todos os progressos que conseguimos. Grande
exemplo é a PEC215, que estabelece “ao Congresso
Nacional a demarcação e homologação de terras indígenas, quilombolas e de áreas
de conservação ambiental, que conforme a Constituição Federal são atribuições
do Poder Executivo” (Santana,2013).
Referências Bibliográficas
BELTRÃO, Jane Felipe. Diversidade cultural rima com Universidade(s) ou conversa propósito de conviver e construir. EdUFPA, Série Aula Magna, No. 4, Belém, 2008.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Política
Indigenista no Século XIX. In:_______ (org.) História dos Índios no
Brasil. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras/Secretaria
Municipal de Cultura/FAPESP, 1998.
DUPRAT, Deborah.
O direito sobre o marco da
plurietnicidade/multiculturalidade. In:
DUPRAT, Deborah (org). Pareceres
jurídicos: direitos dos povos e comunidades tradicionais Manaus: UEA, 2007.
GOMES, Mércio
Pereira. Os Índios e o Brasil. 2ª
Ed. Petrópolis: Vozes, 1991.
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação
indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos Índios no Brasil. 2.ed. São Paulo: Companhia das
Letras/Secretaria Municipal de Cultura/FAPESP, 1998.
MACHADO, Almires Martins Machado. Demarcação e conflitos: de sonhos ao oguatá guassú, a extensa caminhada em busca da(s) terra(s) isenta(s) de mal(es). In: Antropología & Derecho/CEDEAD, 2012.
NETO,
Joaquim Shiraishi. A
particularização do universal: povos e comunidades tradicionais em face das Declarações e Convenções
Internacionais. In: NETO, Joaquim Shiraishi (org). Direito dos
povos e das comunidades tradicionais no Brasil: declarações, convenções
internacionais e dispositivos jurídicos definidores de uma política nacional. Manaus:
UEA, 2007.
SANTANA, Renato. Disponível
em: <http://www.inbrapi.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=167:pec-215-e-aprovada-mas-movimento-indigena-segue-mobilizado-contra-proposta&catid=35:noticias&Itemid=62>
Acesso em: 18/06/2013.
[1] Serviço
de Proteção aos Índios. Criado em 1910 como Serviço de Proteção aos índios e
Localização de Trabalhadores Nacionais e, extinto em 1967.
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