1.
INTRODUÇÃO
Por muito tempo,
dizia-se que “índio de verdade” só se encontrava na Amazônia e no restante do
país eram índios “misturados”, já estavam em vias de perder sua cultura e
identidade. Esse pensamento foi promovido pelo indigenismo (e por certa Antropologia),
onde a falsa dicotomia entre “índios puros” e “índios misturados” prevaleceu
(Silva, 2005:127). Ainda hoje, esse pensamento prevalece em grande parte da
população brasileira que, por sua vez, não tem acesso aos novos estudos e
discussões que são promovidos pela comunidade acadêmica.
As populações indígenas do Nordeste
que se viam estigmatizadas por essa linha de pesquisa, atualmente, recebem a
devida atenção dos antropólogos e indigenistas. Pacheco de Oliveira (1999) e
Secundino (2003) escreveram trabalhos maravilhosos, onde apontam toda a
trajetória histórica vivida pelas populações nordestinas e a necessidade de
promover a elas um estudo mais aprofundado para que possam ter a garantia de
seus direitos e autonomias.
O maior problema enfrentado pelas
comunidades indígenas do Nordeste, decorrente a falta de estudo sobre ao
peculiar processo histórico em que estas estão inseridas, é a demarcação de
terras. O descaso das políticas públicas indigenistas e o intenso contato com a
sociedade não-indígena tem colocado essas populações em um intermitente
conflito entre indígena e grandes latifundiários ou empresários do ramo de
hotelaria. No caso dos Pataxó por exemplo, “no pensamento dos empresários da região, principalmente nos ramos de
hotelaria e turismo, eles deviam tomar as rédeas da Coroa Vermelha, tirar os
índios dali e colocar suas moradias bem longe na floresta.” (Grünewald, 2003:
60)
Nesse universo de populações
indígenas nordestinas, a que destacarei no presente trabalho será a etnia
Pataxó, grupo indígena que me acolheu e me dedico a estudar. A importância de
dar voz a estes grupos que são subjugados e relegados pelas políticas
indigenistas, sempre colocados à prova sua identidade, contribui para a luta e
resistência vivenciadas por eles. Pois, se as populações indígenas que não
recebem questionamentos sobre sua identidade já sofrem com a falta da prática e
descaso das políticas públicas, quiçá as questionadas quanto a isso o tempo
todo.
Professor de Cultura, Tamarú |
2.
A
IDENTIDADE PATAXÓ EM QUESTÃO
Giménez
(2008) – em seu livro de testemunho pessoal das suas vivências no sul baiano –
conta um pouco sobre os Pataxó. Afirma que num primeiro olhar não se via tanta
diferença entre um Pataxó e qualquer um dos caboclos da vila[1],
entretanto, ao observar mais profundamente em sua convivência, foi possível
perceber como os costumes e pensamentos Pataxó eram tão adversos ao dos outros
moradores da região.
De
fato, pude perceber nos trabalhos produzidos sobre este grupo étnico, a
observação da reorganização da cultura Pataxó em alguns aspectos (Pedreira,
2013). Pois, se pegarmos os relatos dos viajantes do período colonial e
imperial que caracterizaram os Pataxó, não encontraremos descrições semelhantes
aos Pataxó atuais (Cancela, 2007). Pacheco de Oliveira (1997) faz um panorama
histórico sobre os processos interétnicos ocorridos na Bahia e os processos de etnogêneses, o autor salienta que antes
do século XIX já não se diziam em povos indígenas no Nordeste (Idem:58).
Entretanto, sabe-se que o discurso da inexistência de populações indígenas caia
(e ainda caem) muito bem em áreas de interesses políticos e econômicos.
Castro
(2008) orienta muito bem uma reflexão sobre esse fenômeno da aparente baixa distintividade sociocultural que os grupos
nordestinos possuem. Discute a posição que a antropologia geralmente
toma em relação aos povos indígenas, com seus conceitos e padronizações.
Contudo, todos eles caem por terra quando se tratam das populações indígenas
nordestinas – “indígenas nordestinos são um caso específico”. O processo
histórico que envolveu esses povos necessita de novos olhares e argumentações
diferentes das sempre promovidas pela Antropologia Clássica e a própria
História. Pois a reinvenção e ressignificação[2]
são processos de lutas políticas, já que o órgão tutor exige das comunidades
nativas certos elementos para que sejam reconhecidos e assim conseguirem
assistência e principalmente a demarcação de seus territórios. E “a simples
substituição de uma teoria da aculturação por uma teoria de etnogênese
negligencia uma série de acontecimentos efetivamente vividos” (Castro,
2008:87). A meu ver, o termo etnogênese
nos leva a pensar em “nascimento de uma etnia”, entretanto, quase a totalidade
dos grupos indígenas que entram na caracterização de etnogênese já existiam,
como os Pataxó. A História nos mostra que sim, em alguns momentos omitiram suas
identidades como forma de proteção, mas não deixaram de ser o que são, Pataxó. Felizmente, muitos conceitos predominantes
estão sendo superados atualmente (Silva, 2005).
Oponho-me
ao discurso de Giménez quando julga a perda
da verdadeira identidade Pataxó “em troca de histórias contadas pelos ‘brancos’
e ‘esbranquiçados’ das ONGs indigenistas e do CIMI”[3].
Posso até tentar compreendê-la, mas ao refletir sobre todos os processos
históricos passados pelos Pataxó e a leitura de vários teóricos da área,
sinto-me na obrigação de discordar. Primeiro, não se perde a cultura. A cultura
por ser dinâmica, é manipulada, ressignificada, modificada, mas nunca é perdida
(Silva, 2005:118). Segundo, é visível a contribuição dos órgãos não
governamentais na melhoria das condições de vida dessa população. Penso até
que, se não fosse o apoio dado por elas, os Pataxó continuariam sofrendo um
decréscimo populacional considerável. Até quem sabe talvez, infelizmente, fazer
jus as premissas e afirmativas de Darcy Ribeiro[4].
Enfim,
o apoio dado pelos órgãos não governamentais indigenistas contribuiu muito para
a organização política desses grupos. Orientações que nunca receberam ou que
deveriam receber dos órgãos oficiais do Governo responsáveis pela questão
indígena. Na década de 30, por exemplo, os Pataxó e outras etnias do extremo
sul baiano foram relegados e o SPI se manteve omisso diante de suas
necessidades. Por volta dos anos 40, um Posto Indígena foi construído, o
Caramuru-Paraguaçu (Cunha, 2010:37). Contudo, seu objetivo principal era
capturar indígenas para trabalhar nas fazendas da região e promover os
propósitos das políticas indigenistas da época, a integração e civilização das
populações nativas. O relato a seguir de Dona Maura nos dá uma ideia da
situação:
Meus pais moravam na mata, mas um dia o SPI tirou eles
da mata; foi quando abriram posto Caramuru-Paraguaçu [...]. Naquela época eles
capturavam muitos índios da mata e tratavam de todo jeito. Botaram no meio dos
“civilizados”. Eles pegaram os maridos e deixaram as esposas no mato ou pegaram
os filhos e traziam sem a mãe, sem o pai [...]. Muitas crianças foram criadas
pelo chefe do posto. Muitos morriam também de tristeza, amarrados a um pau e
com saudades dos parentes que ficaram no mato.[5]
Neste
mesmo período, uma equipe enviada por Getúlio Vargas veio até a região habitada
pelos Pataxó para verificar a área que seria fundado o Parque Nacional do Monte
Pascoal. O Alm. Gago Coutinho relata o que encontrou na Aldeia Barra Velha:
É desolador o aspecto de miséria do povoado onde
passamos a primeira noite [...] temos visto caboclos inteiramente doentes e
analfabetos. Na aldeia Barra Velha encontramos uma pequena população
descendentes dos tupiniquins. Todo mundo é doente. Uns atacados pelo
impaludismo, outros pela verminose.[6]
Porém, Veronez (2008:30) nos dá outro parecer, muito
semelhante ao que Mani me disse na Geru Tucunã ao relembrar sua infância em
Barra Velha, de que os Pataxó,
Gozavam de certa prosperidade, produziam farinha de
mandioca, extraíam da mata cordas de embira, faziam gamelas e colheres de
madeira, tiravam a piaçava para vender. No pé do monte Pascoal plantavam
banana, café e cacau. Os produtos eram vendidos aos moradores dos pequenos
povoados que moravam próximo à região.
A autonomia dessa comunidade foi dramaticamente
interrompida quando as primeiras equipes técnicas visitaram a área,
estabelecendo contatos para a demarcação do Parque Nacional Monte Pascoal, em
19 de abril de 1943, apoiadas pelo Decreto nº 12.729.
Pois
bem, voltando a Gimenez (2008), sobre sua reflexão de que exteriormente pouco
se diferenciava um Pataxó de um caboclo sul baiano, contudo carregavam em si,
em seu cotidiano, lógica, crenças e costumes particulares. Em conversas informais
com Bayara e Mani, respectivamente cacique da Aldeia Geru Tucunã e sua esposa,
relembraram seus tempos infantis em Barra Velha, os costumes de se cozinhar na
folha de patioba, dormir em jirau, entre tantos outros hábitos mantidos por
eles, mas que não se repetiam entre os caboclos da redondeza. Entretanto, o
exterior sempre contou muito, infelizmente, e, por conta disso, ao decretar a
implantação do Parque Nacional do Monte Pascoal, afirmaram que naquela região
não moravam indígenas, mas sim, uns poucos caboclos maltrapilhos, posseiros
daquela terra (Sampaio, 2000:36). Assim, a construção do Parque poderia ser
efetivada sem problema algum.
Quando
Getúlio Vargas assume o poder nos anos 30, começa uma política de
nacionalização. Esse novo movimento, buscava sobretudo, dar ênfase e valorizar
de maneira positiva o discurso da mistura entre as três raças[7]:
negra, branca e indígena. E “para implementar tais tarefas, o governo getulista
promove a construção institucional de espaços físicos ou simbólicos” no intuito
de “manter uma certa continuidade com o passado, com a tradição.” (Barbalho,
2007:40) Assim, o Monte Pascoal, território tradicional Pataxó, torna-se
Patrimônio Nacional pelo Decreto Lei nº 179 de 19 de Abril de 1943 por ser o
primeiro avistamento de terra pelos Portugueses quando chegaram às terras que
viriam a ser chamadas de Brasil, portanto, justificaria tornar-se um símbolo
nacional. Entretanto, para a construção do PNMP[8],
uma das exigências era a saída dos moradores indígenas e não-indígenas daquele
local. Entretanto, vale citar que o Monte Pascoal se tornou
território tradicional dos Pataxó, desde abril de 1861, “quando o governo da
Província da Bahia reuniu comunidades indígenas dispersas na região de Porto
Seguro em um único aldeamento”[9].
Contudo já em 1788, em uma carta datada de 31 de Julho, o padre Cypriano já
relatava que “nas vizinhanças do Monte Pascoal e nas suas fraldas está situada
as aldeias do gentio Pataxó, que saem muitas vezes a praia para pescar
tartarugas”[10].
Em todo o
processo que se deu desde o decreto para a construção do PNMP ao ano de 1951,
os Pataxó buscaram seu reconhecimento étnico e demarcação de suas terras.
Infelizmente, não foi possível e no emblemático ano de 1951, no mês de maio,
ocorre um terrível massacre que promove uma diáspora populacional. Após esse
confronto, temerosos com o que mais poderia acontecer, os Pataxó saem de seu
território e inicia-se um processo de omissão da identidade. Nesse processo de
esquecimento (Pollack, 1989), os Pataxó silenciam-se sobre sua história e sua
cultura.
O
que me cabe perceber, é que após anos de silêncio identitário e da própria
história, os Pataxó perceberam que retomar e revitalizar sua história e
significância traria muito mais frutos do que a omissão. O acontecimento de 51
já não é mais apenas um fato na trajetória Pataxó, mitificado a história, ele
assume características de narrativas míticas. Assim, manipulando (Silva, 2005:117) suas identidades, revisitando seu
passado e ressignificando símbolos, o grupo reafirma seu compromisso diante de
toda a sociedade e com eles mesmos.
3.
A EDUCAÇÃO ESCOLAR E INDÍGENA PATAXÓ
P-
Escola então é importante?
Tururim
- É importante. Pataxó com escola não é enganado por branco. Se Pataxó soubesse
ler não teria acontecido a desgraça de 1951. Como cacique penso mais no futuro.
Devo pensar no futuro do meu povo. Futuro é muito importante. Futuro é igual a
passado. Não deve ser desprezado. Se acontecer nova violência povo Pataxó
acaba. Isso eu tenho que pensar muito. Por isso eu falo pro meus irmãos;
escola, estrada, tudo isso é importante pra Pataxó.
P
- Alfredo do que é que vocês mais precisam?
Uma
escola para quitoque. Quem geme
é quem sente a dor. Só se põe o chapéu onde alcança a mão. Índio é ingênuo,
bom, e não sabe bem quando civilizado está enganando. Por isso escola. Tem
muito quitoque sem escola, crescendo, e sempre ingênuo. Se índio soubesse ler
não teria ido na conversa dos dois homens que vieram do Rio e enganaram o chefe
Onório. Índio nem quer lembrar isso, mas veve
lembrando.[11]
Por
algum tempo, o Fogo de 51, se manteve silenciado, a própria identidade se
manteve omissa. Após o triste episódio, dizer-se indígena era temido. Acima de
tudo, relembrar e contar as atrocidades vividas naquele infeliz mês de maio
doía muito. Ainda dói. Os mais velhos da aldeia costumam não querer dizer sobre
o Fogo e quando dizem é uma narrativa cheia de silêncios e reticências. A
história também se faz pelo não dito, pelo que não se quer dizer. A memória é
seletiva e só seleciona o que julga importante (Pollack, 1989). E os Pataxó
compreenderam que recontar a história e vivificá-la é um importante meio de
luta e reafirmação étnica. Perceberam que ao se interessar por seu passado e
não teme-lo, ajudam a construir um caminho melhor para o futuro.
Para
se ter uma ideia, os Pataxó despontam no quesito educação escolar indígena,
pois viram que com um ensino de qualidade nunca mais passariam por situações como a do Fogo. Mais estratégicos e
autônomos, os Pataxó tem revitalizado sua cultura, buscando sempre o novo,
buscando sempre conhecimento em diversas áreas. Sabe-se que a muitos jovens
ingressam ao ensino superior em busca de capacitação para as áreas que não tem
tanto domínio.
Bomfim (2012), em sua tese de
mestrado, trabalha o processo de retomada da língua
pataxó (patxohã), ou processo de “revitalização da língua”. Ela própria é
Pataxó e busca dar “relevância à experiência do povo Pataxó com a escola, ao
papel da escola no fortalecimento no ensino de patxohã nas aldeias” (Idem:16) e
as motivações da política linguística nas aldeias.
O
crescente processo de escolarização entre os Pataxó também é comentada por
Carvalho (2009:518). Os Pataxó perceberam que a escolarização ajudaria em sua
organização étnica e política. Veronez (2008) é quem faz um estudo mais
aprofundado sobre a importância da escolaridade na manutenção da identidade
Pataxó. Ela mostra que:
As lideranças políticas das aldeias compreendem a
escola como um meio de conferir capacidade aos estudantes para que estes sejam
sujeitos críticos e políticos, e futuramente se tornem os agentes de
transformação engajados social e politicamente com as comunidades em que estão
inseridos. Uma força sutil de resistência que se faz perdurar na dinâmica e no
modo de ser Pataxó.
Assim, a escola é para os Pataxó um
instrumento de luta e resistência na manutenção da cultura e da revitalização
da língua patxohã.
4.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os
Pataxó são um dos grupos do Nordeste que participam/participaram da luta pelo
reconhecimento étnico. Como tratei no texto, o termo etnogênese pode soar como
“nascimento de uma etnia”, que não é o caso dos Pataxó, pois como a história
demonstram sempre estiveram lá e foram até inimigos da coroa.
Entretanto,
a revitalização da cultura e a ressignificação de certos elementos surgem no
processo atual e peculiar que as comunidades indígenas presentes no Nordeste
brasileiro estão inseridos.
A
escola é fundamental nesse processo, pois é através dela que conhecimentos
tradicionais e ocidentais são transmitidos, auxiliando assim na construção de
cidadãos indígenas mais engajados politicamente.
5.
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[1] A autora se refere a Coroa
Vermelha, uma cidadezinha próxima a Aldeia Barra Velha e a Mata Medonha,
territórios tradicionais Pataxó.
[2] Sobre os termos, ver em: BOURDIEU, Pierre. O
Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand. Brasil, 2000.
[4] Dado como extintos, pelo
antropólogo em 1957. Ele afirmava também que até o final do século XX as
populações indígenas seriam extintas.
[6] CASTRO, R. Berbert de (org.). Sob os Céus de Porto Seguro.
Salvador: diretoria de Cultura e Divulgação do Estado da Bahia; Imprensa
Oficial do Estado, 1940, p. 132.
[7] Grifo por pensar o termo Raça deveras ultrapassado. Posto
que vivemos em um mundo puramente conceitual, outros poderiam cumprir bem esse
papel. Falar em povo, etnia, ascendência, até mesmo nação soa bem mais
magnânimo, pois exalta o ser e sua origem e não o classifica. Disserto
melhor sobre esse tema numa postagem em meu blog sobre temática indígena,
disponível em: < http://promessasdosol.blogspot.com.br/2013/06/ao-terminar-leitura-do-artigo-de.html
>
[9] Povo Pataxó quer o Monte Pascoal
de volta. Disponível em: < http://www.socioambiental.org/website/parabolicas/edicoes/edicao53/reportag/p03.htm>
Acesso em: 15/09/2012
[10] CARTA do padre
Cypriano Lobato Mendes a D. Pedro III sobre a economia da capitania da Bahia.
Salvador, 31 de julho de 1788. AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 68, D. 13019.
[11] Trecho
de uma entrevista feita por um jornalista em 1968 com Seu Tururim , quando este
era Cacique, e Alfredo Braz vice-cacique, e ainda estavam lutando para a
demarcação do Território Pataxó de Barra Velha. In: BONFIM, Arani Braz.
Patxohã, “Língua de Guerreiro”: um estudo sobre o processo de retomada da
Língua Pataxó. Dissertação de mestrado do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos
Étnicos e Africanos, UFBA, Salvador, 2012.