sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Afinal, quem são "índios"?


 
 
O debate sobre a identidade étnica indígena, por mais blasê que possa parecer, ainda paira sobre as mentes das autoridades governamentais, acadêmicos e, em especial, sobre grande parte da população não indígena. O imaginário de que o indígena verdadeiro é aquele que vive nas matas, caça de arco e flecha e não possui aparato tecnológico moderno ainda predomina sobre grande parte da população e até mesmo dos governantes. Imaginar que há aldeias urbanas então, parece historinha pra boi dormir. Contudo, um dado interessante é que “quase 50% da população (indígena) não vive em aldeias rurais, mas está nas cidades”[1].

“ A conquista desses direitos, aliada à maior sensibilidade do povo e do governo brasileiros e melhorias dos serviços públicos destinados aos povos indígenas, contribui para o maior crescimento demográfico do segmento indígena, na medida em que muitos indígenas que negavam suas identidades étnicas, para não sofres discrimações e represálias ou até mesmo perseguições, voltaram a assumir o reconhecimento de suas identidades e direitos e lutar por eles.”[2]

            Assim, a grande diversidade de povos indígenas brasileiros contraria todos os  estudos do século XIX e XX em que, antropólogos afirmavam a total extinção dessas populações. Atualmente, cerca de 305 etnias, com mais de 180 línguas, vivem no Brasil. Os últimos Censos tem demonstrado que cerca de 800 mil pessoas se autodeclaram indígenas, pertencentes a alguma etnia ou não.

            Contudo, entre a lei e as boas ideias e a efetivação destas há um grande abismo. Quando enquadrados no que seria o indígena “modelo”- os viventes nos grotões da Amazônia, por exemplo - mesmo com todas as dificuldades para se estabelecer seus direitos constituídos no artigo 231 e 232, – fora os direitos estabelecidos nos tratados internacionais – ainda são levados mais em consideração do que os grupos étnicos “ressurgidos”. Em sua maioria, estes conhecidos como “caboclos” ou “bugres”, vivem a margem da sociedade, quase sempre em periferias, quando em cidades, abaixo da linha da pobreza. São os indígenas “problemas”.

            Os grupos étnicos “ressurgidos” são relativos ao fênomeno que os estudiosos chamam de etnogênese. Termo utilizado para a constituição de “novos grupos étnicos”[3], que vem ressurgindo desde meados da década de 70, especialmente no Nordeste. Entretanto, esses grupos emergentes constantemente sofrem descasos dos órgãos competentes.

“Ilustremos essa resistência da FUNAI através das declarações dos seus próprios diretores. Um presidente do órgão durante os anos 1990 chegou a dizer: ‘não é possível que comunidades pobres do Nordeste pintem a cara e simulem rituais só para serem considerados índios’. E o atual* presidente da FUNAI, Mércio Gomes, seguiu o mesmo raciocínio: ‘há organizações que estimulam comunidades de algumas áreas a reinvindicar a posse de terras sob a alegação de que são índios’.”[4]

Para os antropólogos, grupos étnicos eram aqueles que compartilham valores, formas e expressões culturais comuns. Entretanto, um mesmo grupo étnico poderia sofrer variações dependendo da situação ecológica e social que se encontrasse.[5] Com as contribuições de Barth e outros antropólogos, hoje “grupo étnico é ‘tipo organizacional’ e não ‘unidade de cultura’”[6]. Ou seja, a cultura está para o grupo e não o grupo para a cultura. Com o passar do tempo as relações culturais, valores e expressões podem se alterar, sem que o grupo deixe de sê-lo.[7] Para resumir, antropologicamente falando, os grupos étnicos “são unidades que emergem de mecanismos sociais de diferenciação estrutural entre grupos de interação”[8] e se identificam tal qual. Portanto, todas as coletividades estão em constante mudança e interação, então estabeleceu-se que importa é como o grupo se identifica e é identificado como tal.
 
Indígenas Xukuru em Ritual

A partir da década de 70 e com maior intesidade pós-Constituição de 88, vários grupos reunidos começaram a se autoidentificar como indígenas. Indígenas que nunca deixaram de ser, visto que no período colonial a prática do casamento entre negros e indígenas, indígenas e brancos, era fortemente utilizada, para a miscigenação e integração da pessoa indígena na unidade nacional, como também para a tomada de suas terras, já que “mestiço” para a mentalidade da época – e até hoje em vários casos – não era “índio”.

“Assim como no caso dos índios o Nordeste, os indígenas do médio Solimões são estigmatizados e definidos como misturados devido às suas relações com grupos de variadas origens e posições sociais, inclusive outros povos indígenas.”[9]

 

Essa “mistura” advém de um processo histórico intenso, onde os indígenas, foram aldeados, utilizados como mão de obra, obrigados a falar o português e viver conforme o modelo não indígena. Ou, particularmente, após terem ocultado durante séculos a identidade indígena, já que “ser índio nunca foi bom”[10]. Como também podem ter sido renegadas as políticas públicas e órgãos competentes, sentindo na pele o preconceito e a dor de ser indígena. Caso como o dos Pataxó no extremo sul baiano, a língua Pataxó quase se perdeu quando já no século XX, em 1953, houve um verdadeiro massacre na Aldeia Bom Jardim (atual Barra Velha). Muitos saíram para as cidades e nunca mais voltaram as raízes, os falantes da língua já não ensinavam aos seus filhos pois tinham com eles que ser índio não era coisa boa. Trabalhos intensos tem sido feitos para afirmação e preservação da cultura Pataxó.

Para Cunha[11],

“Os embates legais travam-se geralmente em torno da identidade indígena e aqui o modelo que chamei platônico da identidade é amplamente invocado tanto por parte dos fazendeiros quanto por parte dos próprios índios, forçados a corresponderem aos esteriótipos que se têm deles.”

Ou seja, os direitos só são efetivados quando o indígena, segue o modelo do indígena adotado, até hoje, em pleno século XXI, como o “verdadeiro”. Para que os direitos estabelecidos na Constituição e nos tratados internacionais, como a Convenção 169 da OIT, o índigena é obrigado a acionar sua identidade étnica sempre que vai a luta, ao Senado, em busca de justiça. Pois, sem a paramentação da identidade étnica o grupo não tem voz e nem vez. Na incrível mentalidade dos governantes e da população não indígena, “índio só é índio” se usar cocar, arco e flecha e andar nu. Sem compreender que mesmo que haja outras possibilidades de vivências de culturas, ele não deixa de ser indígena decorrente a quaisquer fatores. Sua cosmologia continua diferente da cosmologia do “branco”, suas tradições e processo histórico também.
 
 

            A importância de saber quem é indígena ou não, não é uma preocupação apenas antropológica, mas também jurídica. Villares[12] afirma que só através dessa identificação é que normas e políticas de proteção poderão ser concretizadas. É preciso conhecer determinado grupo étnico e compreender seus valores e cosmologia para garantir a preservação de sua organização social, tradições, crenças e principalmente direito originário sobre a terra. No entanto entre o que está no papel e a prática é bem diferente.

            Com a ratificação da Convenção 169 da OIT, em 2002, fica estabelecido que  a “consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que aplicam as disposições da presente Convenção”[13]. Assim tira do Estado a responsabilidade de “classificar” quem é “índio” e quem não é, deixando que a autoindentificação valha. E aí fica a pergunta: Por que, então, o Governo insiste em cobrar deles uma pertença étnica para provar que são indígenas?  Em 2003, no I Encontro Nacional dos Povos Indígenas em Luta pelo Reconhecimento Étnico e Territorial, os indígenas reinvindicam além de demarcação e regularização de suas áreas territoriais, exigiram ser chamados de “índios resistentes” e não “ressurgidos”, “emergidos”, para eliminar o estigma de que são menos índios.

“A tradição legalista e formalista, em especial colonialista de tais funcionários, associada a um forte senso comum sobre o que deve ser um índio (naturalidade e imemorialidade), tem funcionado como sério obstáculo à implementação de tais avanços teóricos e jurídicos.”[14]

            O caso é que mesmo resistentes, ressurgidos, independente do conceito utilizado para designá-los ou até mesmo os indígenas “verdadeiros”, encontram dificuldades para que os direitos essenciais em relação a suas comunidades e a pessoa indígena sejam efetivados. O maior deles é o direito à terra, seja ela tradicionalmente ou historicamente ocupada. De acordo com a Constituição Cidadã de 88 todas as terras seriam demarcadas em até 5 anos e o que vemos é uma lentidão no processo de demarcação e regulamentação dessas terras que se arrasta por mais de 20 anos. Principalmente no início do Governo Lula para cá.



[1] VAZ FILHO, Florêncio Almeida. Identidade Indígena no Brasil hoje. Disponível em: <http://www.alasru.org/wp-content/uploads/2011/12/25-GT-Flor%C3%AAncio-Almeida-Vaz-Filho.pdf> Acesso em: 16/09/2012
[2] BANIWA, Gersem. A conquista da cidadania indígena e o fantasma da tutela do Brasil contemporâneo. In: RAMOS, Alcida Rita (org). Constituições Nacionais e Povos Indígenas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. P.207
[3] ARRUTI, José Maurício. Indianidade: etnogênses indígenas. In: Povos indígenas no Brasil. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006.
[4] VAZ FILHO, Florêncio Almeida. Identidade Indígena no Brasil hoje. Disponível em: <http://www.alasru.org/wp-content/uploads/2011/12/25-GT-Flor%C3%AAncio-Almeida-Vaz-Filho.pdf> Acesso em: 16/09/2012. * informação retirada de LACERDA, Rosane. Povos indígenas – A maior das dívidas. Acessada pelo autor em: 17/09/2006.
[5] CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012. P.106
[6] VAZ FILHO, Florêncio Almeida. Identidade Indígena no Brasil hoje. 2011. Disponível em: <http://www.alasru.org/wp-content/uploads/2011/12/25-GT-Flor%C3%AAncio-Almeida-Vaz-Filho.pdf> Acesso em: 16/09/2012
[7] CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012. P.108
[8] ARRUTI, José Maurício. Indianidade: etnogêneses indígenas. In: Povos indígenas no Brasil. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006.
[9] COSTA E SANTOS, Rafael Barbi e OLIVEIRA E SOUZA, Mariana. “Todo amazonense é índio”: o argumento inclusivo dos indígenas emergentes no médio Solimões. Disponível em: < http://www.mamiraua.org.br/cms/content/public/documents/publicacao/12c9632c-14b2-40eb-8c49-bb9de467f890_santos-e-souza---todo-amazonense-e-indio---o-argumento-inclusivo-dos-indigenas-emergentes-no-medio-solimoes.pdf > Acesso em:27/11/2013
[10] Seu Nilson Pataxó. Aldeia Geru Tucunã. 09/2013.
[11] CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012. P.124
[12] VILLARES, Luiz Fernando. Direito e povos indígenas. Curitiba: Juruá, 2009. p.28
[13] Artigo 1º, 2º páragrafo. Convenção 169 da OIT.
[14] ARRUTI, José Maurício. Indianidade: etnogêneses indígenas. In: Povos indígenas no Brasil. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006.

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