O debate sobre a identidade étnica indígena, por mais blasê que possa
parecer, ainda paira sobre as mentes das autoridades governamentais, acadêmicos
e, em especial, sobre grande parte da população não indígena. O imaginário de
que o indígena verdadeiro é aquele que vive nas matas, caça de arco e flecha e
não possui aparato tecnológico moderno ainda predomina sobre grande parte da
população e até mesmo dos governantes. Imaginar que há aldeias urbanas então,
parece historinha pra boi dormir.
Contudo, um dado interessante é que “quase 50% da população (indígena) não vive
em aldeias rurais, mas está nas cidades”[1].
“ A conquista desses direitos,
aliada à maior sensibilidade do povo e do governo brasileiros e melhorias dos
serviços públicos destinados aos povos indígenas, contribui para o maior
crescimento demográfico do segmento indígena, na medida em que muitos indígenas
que negavam suas identidades étnicas, para não sofres discrimações e
represálias ou até mesmo perseguições, voltaram a assumir o reconhecimento de
suas identidades e direitos e lutar por eles.”[2]
Assim,
a grande diversidade de povos indígenas brasileiros contraria todos os estudos do século XIX e XX em que,
antropólogos afirmavam a total extinção dessas populações. Atualmente, cerca de
305 etnias, com mais de 180 línguas, vivem no Brasil. Os últimos Censos tem
demonstrado que cerca de 800 mil pessoas se autodeclaram indígenas,
pertencentes a alguma etnia ou não.
Contudo,
entre a lei e as boas ideias e a efetivação destas há um grande abismo. Quando
enquadrados no que seria o indígena “modelo”- os viventes nos grotões da
Amazônia, por exemplo - mesmo com todas as dificuldades para se estabelecer
seus direitos constituídos no artigo 231 e 232, – fora os direitos
estabelecidos nos tratados internacionais – ainda são levados mais em
consideração do que os grupos étnicos “ressurgidos”. Em sua maioria, estes
conhecidos como “caboclos” ou “bugres”, vivem a margem da sociedade, quase
sempre em periferias, quando em cidades, abaixo da linha da pobreza. São os
indígenas “problemas”.
Os
grupos étnicos “ressurgidos” são relativos ao fênomeno que os estudiosos chamam
de etnogênese. Termo utilizado para
a constituição de “novos grupos étnicos”[3], que vem
ressurgindo desde meados da década de 70, especialmente no Nordeste.
Entretanto, esses grupos emergentes constantemente sofrem descasos dos órgãos
competentes.
“Ilustremos essa resistência da
FUNAI através das declarações dos seus próprios diretores. Um presidente do
órgão durante os anos 1990 chegou a dizer: ‘não é possível que comunidades
pobres do Nordeste pintem a cara e simulem rituais só para serem considerados
índios’. E o atual* presidente da FUNAI, Mércio Gomes, seguiu o mesmo
raciocínio: ‘há organizações que estimulam comunidades de algumas áreas a
reinvindicar a posse de terras sob a alegação de que são índios’.”[4]
Para os antropólogos, grupos étnicos eram aqueles que compartilham
valores, formas e expressões culturais comuns. Entretanto, um mesmo grupo
étnico poderia sofrer variações dependendo da situação ecológica e social que
se encontrasse.[5]
Com as contribuições de Barth e outros antropólogos, hoje “grupo étnico é ‘tipo
organizacional’ e não ‘unidade de cultura’”[6]. Ou seja, a
cultura está para o grupo e não o grupo para a cultura. Com o passar do tempo
as relações culturais, valores e expressões podem se alterar, sem que o grupo
deixe de sê-lo.[7]
Para resumir, antropologicamente falando, os grupos étnicos “são unidades que
emergem de mecanismos sociais de diferenciação estrutural entre grupos de
interação”[8] e se
identificam tal qual. Portanto, todas as coletividades estão em constante
mudança e interação, então estabeleceu-se que importa é como o grupo se
identifica e é identificado como tal.
A partir da década de 70 e com maior intesidade pós-Constituição de 88,
vários grupos reunidos começaram a se autoidentificar como indígenas. Indígenas
que nunca deixaram de ser, visto que no período colonial a prática do casamento
entre negros e indígenas, indígenas e brancos, era fortemente utilizada, para a
miscigenação e integração da pessoa indígena na unidade nacional, como também
para a tomada de suas terras, já que “mestiço” para a mentalidade da época – e
até hoje em vários casos – não era “índio”.
“Assim como
no caso dos índios o Nordeste, os indígenas do médio Solimões são
estigmatizados e definidos como misturados devido às suas relações com
grupos de variadas origens e posições sociais, inclusive outros povos
indígenas.”[9]
Essa “mistura” advém de um processo histórico intenso, onde os indígenas, foram
aldeados, utilizados como mão de obra, obrigados a falar o português e viver
conforme o modelo não indígena. Ou, particularmente, após terem ocultado
durante séculos a identidade indígena, já que “ser índio nunca foi bom”[10]. Como também podem
ter sido renegadas as políticas públicas e órgãos competentes, sentindo na pele
o preconceito e a dor de ser indígena. Caso como o dos Pataxó no extremo sul
baiano, a língua Pataxó quase se perdeu quando já no século XX, em 1953, houve
um verdadeiro massacre na Aldeia Bom Jardim (atual Barra Velha). Muitos saíram
para as cidades e nunca mais voltaram as raízes, os falantes da língua já não
ensinavam aos seus filhos pois tinham com eles que ser índio não era coisa boa.
Trabalhos intensos tem sido feitos para afirmação e preservação da cultura
Pataxó.
Para Cunha[11],
“Os embates legais travam-se
geralmente em torno da identidade indígena e aqui o modelo que chamei platônico
da identidade é amplamente invocado tanto por parte dos fazendeiros quanto por
parte dos próprios índios, forçados a corresponderem aos esteriótipos que se
têm deles.”
Ou seja, os direitos só são
efetivados quando o indígena, segue o modelo do indígena adotado, até hoje, em
pleno século XXI, como o “verdadeiro”. Para que os direitos estabelecidos na
Constituição e nos tratados internacionais, como a Convenção 169 da OIT, o
índigena é obrigado a acionar sua identidade étnica sempre que vai a luta, ao
Senado, em busca de justiça. Pois, sem a paramentação da identidade étnica o
grupo não tem voz e nem vez. Na incrível mentalidade dos governantes e da
população não indígena, “índio só é índio” se usar cocar, arco e flecha e andar
nu. Sem compreender que mesmo que haja outras possibilidades de vivências de
culturas, ele não deixa de ser indígena decorrente a quaisquer fatores. Sua
cosmologia continua diferente da cosmologia do “branco”, suas tradições e processo
histórico também.
A
importância de saber quem é indígena ou não, não é uma preocupação apenas
antropológica, mas também jurídica. Villares[12] afirma que só
através dessa identificação é que normas e políticas de proteção poderão ser
concretizadas. É preciso conhecer determinado grupo étnico e compreender seus
valores e cosmologia para garantir a preservação de sua organização social,
tradições, crenças e principalmente direito originário sobre a terra. No
entanto entre o que está no papel e a prática é bem diferente.
Com
a ratificação da Convenção 169 da OIT, em 2002, fica estabelecido que a “consciência de sua identidade indígena ou
tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os
grupos aos que aplicam as disposições da presente Convenção”[13]. Assim tira do
Estado a responsabilidade de “classificar” quem é “índio” e quem não é,
deixando que a autoindentificação valha. E aí fica a pergunta: Por que, então,
o Governo insiste em cobrar deles uma pertença étnica para provar que são
indígenas? Em 2003, no I Encontro
Nacional dos Povos Indígenas em Luta pelo Reconhecimento Étnico e Territorial,
os indígenas reinvindicam além de demarcação e regularização de suas áreas
territoriais, exigiram ser chamados de “índios resistentes” e não “ressurgidos”,
“emergidos”, para eliminar o estigma de que são menos índios.
“A tradição legalista e
formalista, em especial colonialista de tais funcionários, associada a um forte
senso comum sobre o que deve ser um índio (naturalidade e imemorialidade), tem
funcionado como sério obstáculo à implementação de tais avanços teóricos e
jurídicos.”[14]
O
caso é que mesmo resistentes, ressurgidos, independente do conceito utilizado
para designá-los ou até mesmo os indígenas “verdadeiros”, encontram
dificuldades para que os direitos essenciais em relação a suas comunidades e a
pessoa indígena sejam efetivados. O maior deles é o direito à terra, seja ela
tradicionalmente ou historicamente ocupada. De acordo com a Constituição Cidadã
de 88 todas as terras seriam demarcadas em até 5 anos e o que vemos é uma
lentidão no processo de demarcação e regulamentação dessas terras que se
arrasta por mais de 20 anos. Principalmente no início do Governo Lula para cá.
[1] VAZ FILHO,
Florêncio Almeida. Identidade Indígena
no Brasil hoje. Disponível em:
<http://www.alasru.org/wp-content/uploads/2011/12/25-GT-Flor%C3%AAncio-Almeida-Vaz-Filho.pdf>
Acesso em: 16/09/2012
[2] BANIWA, Gersem.
A conquista da cidadania indígena e o
fantasma da tutela do Brasil contemporâneo. In: RAMOS, Alcida Rita (org). Constituições Nacionais e Povos
Indígenas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. P.207
[3] ARRUTI, José
Maurício. Indianidade: etnogênses
indígenas. In: Povos indígenas no Brasil. São Paulo: Instituto
Socioambiental, 2006.
[4] VAZ FILHO,
Florêncio Almeida. Identidade Indígena
no Brasil hoje. Disponível em:
<http://www.alasru.org/wp-content/uploads/2011/12/25-GT-Flor%C3%AAncio-Almeida-Vaz-Filho.pdf>
Acesso em: 16/09/2012. * informação retirada de LACERDA, Rosane. Povos
indígenas – A maior das dívidas. Acessada pelo autor em: 17/09/2006.
[5] CUNHA, Manuela
Carneiro da. Índios no Brasil: história,
direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012. P.106
[6] VAZ FILHO,
Florêncio Almeida. Identidade Indígena
no Brasil hoje. 2011. Disponível em:
<http://www.alasru.org/wp-content/uploads/2011/12/25-GT-Flor%C3%AAncio-Almeida-Vaz-Filho.pdf>
Acesso em: 16/09/2012
[7] CUNHA, Manuela
Carneiro da. Índios no Brasil: história,
direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012. P.108
[8] ARRUTI, José
Maurício. Indianidade: etnogêneses
indígenas. In: Povos indígenas no
Brasil. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006.
[9] COSTA E SANTOS,
Rafael Barbi e OLIVEIRA E SOUZA, Mariana.
“Todo
amazonense é índio”: o argumento inclusivo dos indígenas emergentes no médio
Solimões. Disponível em: < http://www.mamiraua.org.br/cms/content/public/documents/publicacao/12c9632c-14b2-40eb-8c49-bb9de467f890_santos-e-souza---todo-amazonense-e-indio---o-argumento-inclusivo-dos-indigenas-emergentes-no-medio-solimoes.pdf
> Acesso em:27/11/2013
[10] Seu Nilson
Pataxó. Aldeia Geru Tucunã. 09/2013.
[11]
CUNHA, Manuela Carneiro da.
Índios no Brasil: história, direitos e
cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012. P.124
[12] VILLARES, Luiz
Fernando. Direito e povos indígenas. Curitiba: Juruá, 2009. p.28
[14] ARRUTI, José
Maurício. Indianidade: etnogêneses
indígenas. In: Povos indígenas no
Brasil. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006.
Ótimo texto. Parabéns!
ResponderExcluirPaz.