As legislações estabelecidas aos
povos indígenas sempre foram, parafraseando Perrone-Moisés (1998), “contraditórias,
oscilantes e hipócritas”, não só em tempos de colonização e mornaquia, mas até
hoje. A Constituição Cidadã de 88 é um marco nas conquistas dos povos indígenas
em questões juridícas. Pela primeira vez a pluriculturalidade é afirmada e o
direito e respeito a ela é estabelecio. Entretanto, o que vemos é o despreparo
dos operadores de Direito em relação ao trato desses mesmos direitos. Não só
dos operadores do direito, como dos próprios governantes, deputados, políticos
que tem lançado projetos de lei e leis complementares que ferem diretamente o
capítulo constitucional dedicado especialmente “aos índios”.
O artigo 231 deixa claro que são
reconhecido as populações indígenas seus costumes e direitos sobre a terra que
tradicionalmente ocupam. Mas como colocar em prática esses direitos constitucionais
preservando os direitos originários?
Curi (2012), em seu artigo
caracteriza as diferenças entre o Direito Positivo, estabelecido pelo Estado e
o Direito Consuetudinário, ou seja, o conjunto de normas tradicionais e
costumeiras de uma determinada sociedade. A importância de diferenciar esses
dois sistemas jurídicos contribui para maior entendimento quando se diz
respeito a processos jurídicos que envolvem comunidades tradicionais, especialmente
as indígenas.
A antropologia aliada com o
direito oferece provas para a constituição e prática do direito sobre as
populações indígenas. Helm (2009) nos chama a atenção para a importância do
laudo antropólogico e de como o direito e a antropologia devem se aliar para a
concretização das leis e tratados já constituídos sobre as comunidades
tradicionais. O direito a terra e o direito penal são os mais discutidos e não
rara as vezes os mais mal interpretados. Digo mal interpretados pois, o texto
normativo é pasível de interpretações equivocadas, o operador do direito deve
se atentar a isso, particularmente quando se trata de comunidades indígenas.
Diferentemente do que a maioria da
população e o próprio judiciário pensa, as populações indígenas possuem seus
sistemas judiciários, suas normas sociais. Nas comunidades indígenas não se
separa “o aspecto social do aspecto jurídico” (Curi, 2012, p.236), seu sistema
normativo está intimamente ligado com sua cosmologia e sua vivência no
dia-a-dia. É preciso atentar para que o Direito Positivo não passe por cima dos
Direitos Consuetudinários. Entretanto, já na Convenção 169 da OIT é afirmado
que deve-se respeitar o direito costumeiro contanto que ele não fira o direito estabelecido
internacionalmente, base para a discussão do infanticídio, por exemplo. Holanda
(2008) já perguntou: “Quem são os humanos dos direitos?”. Seguindo o raciocínio
de Helm (2009, p.10), “a antropologia e o direito, cada qual como um domínio do
saber, contribuem para a eficácia dos Laudos Antropólogicos”, que por sua vez
contribuem para a efetiva legislação pluricultural sobre os povos indígenas.
Voltando a Holanda, “os
direitos indígenas, sobretudo o direito à diferença, só poderão ser garantidos
por meio da superação do pensamento jurídico moderno e de sua ficção monista,
que supõe o Estado como único produtor de juridicidade”. Afinal, os povos
indígenas possuem determinadas visões de mundo completamente diferentes das
definidas pelo Estado ou órgãos internacionais. E são cosmologias muito mais
profundas, complexas e arraigadas no seio das sociedades que as contém do que
se possa imaginar. O próprio conceito de “vida” abordado por Holanda em seu
trabalho nos ilustra perfeitamente, pois a concepção de vida, quando a vida
começa, se difere entre as sociedades.
Para concluir, Villares (2009, p.15) nos atenta que não há ainda um ramo
independente do Direito para um Direito Indigenista. Consinto e afirmo em dizer
que não há como ter um Direito Indigenista, visto que há “direitos” e povos
indígenas. Por isso, a reflexão jurídica deve ser interdisciplinar para a
prática desses direitos (Stefanes Pacheco, 2010, p.1789). É necessária uma
maior sensibilidade dos operadores do direito que a antropologia, a sociologia,
estudos ambientais, entre tantos outros, saíram das discussões acadêmicas para
a praxi jurídica. E essa discussão
interdisciplinar é crucial para o reconhecimento e a concretização das
definições constitucionais pluriculturais brasileiras.
Referências
CURI,
Melissa Volpato. O Direito
Consuetudinário dos Povos Indígenas e o Pluralismo Jurídico. Espaço Ameríndio,
Porto Alegre, v.6, n.2, p. 230-247, jul./dez. 2012.
HELM,
Cecília Maria Vieira. A Etnografia, a
Perícia e o Laudo Antropológico nos processos judiciais. Cadernos da Escola
de Direito e Relações Internacionais, Curitiba, 15: 5-17. Vol.1.2009
HOLANDA,
Marianna Assunção Figueiredo. Quem são
os humanos dos direitos?: sobre a criminalização do infanticídio indígena.
2008. 157 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia)-Universidade de Brasília,
Brasília, 2008.
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação
indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos Índios no Brasil. 2.ed. São Paulo: Companhia das
Letras/Secretaria Municipal de Cultura/FAPESP, 1998.
STEFANES PACHECO, Rosely A. Povos Indígenas, Direitos e Proteção Ambiental: alguns apontamentos
sobre a questão ambiental e povos indígenas a partir de uma análise
interdisciplinar. Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do
CONPEDI realizado em Fortaleza – CE nos dias 09 a12 de junho de 2010.
VILLARES, Luiz Fernando. Direito e povos indígenas. Curitiba: Juruá, 2009. 350p.
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