sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Indígenas em Movimento!


Quando se fala em Movimento Indígena temos que ter claro o seguinte: se há mais de 300 povos diferentes, não haveria de ser apenas um movimento. Diferentes visões, sistemas jurídicos, valores, podem se chocar e não seguirem uma mesma linha de militância.

Para Baniwa,

“A história dos movimentos indígenas contemporâneos pode ser organizada a partir de períodos e tipos de agências que intermediavam as relações entre os povos indígenas e a sociedade dos brancos.”[1]

Antes eram os órgãos competentes – SPI, FUNAI – que intermediavam as relações entre povos. Hoje, pós-Constituição de 88 com o reconhecimento da capacidade civil indígena, os grupos tem se organizado de forma mais autonôma, através de associações e reforçadas com a ajuda de organizações particulares, não governamentais, pró-índio. Os movimentos indígenas desde então passaram a estar associados aos movimentos sociais que eclodiram ao longo da década de 80, no Brasil. Esses movimentos são importantes para a compreensão das novas políticas indigenistas nacionais, no qual as populações indígenas cada vez mostram sua autonomia na construção de seus próprios processos históricos. Esses movimentos vem destituir a imagem presente até o Estatudo do Índio de 1973, em que eram considerados relativamente incapazes. Além de defender seus direitos com suas próprias vozes.

Os movimentos sociais juntamente com os movimentos indígenas, já conquistaram leis e efetivação de direitos. É o caso, por exemplo, dos que lutam pela proibição da polêmica prática do infanticídio. Religiosos, quase sempre evangélicos, juntamente com indígenas de determinadas etnias que não concordam com a prática do infanticídio tem seu próprio movimento. A aprovação do PL 1057/2007, mais conhecido como Lei Muwaji[2], é o exemplo das pressões exercidas por um desses grupos. Contudo, há os movimentos que lutam para que suas práticas e crenças continuem sendo respeitadas e que haja uma maior autonomia em seu território.
 
 
Assim, Helm[3] afirma que, “a Carta de 1988 (...) reconheceu o direito à diferença. A ideologia da integração constou dos textos anteriores, sendo substituída pelo reconhecimento de que os povos indígenas são distintos (...)”. Portanto, essa pluriculturalidade deve ser levada em conta e principalmente ser compreendida quando observamos os diversos movimentos indígenas que existem atualmente no país. Para Turón, “o protesto indígena continua sendo variado, visto que nem todos os povos indígenas foram subjugados pela mesma força, nem ao mesmo tempo”[4].

“Segundo a pesquisadora (Poliane Soares dos Santos Bicalho), as lideranças indígenas dispensam porta-vozes e passam a falar por si mesmas. Uma mudança que pode ser verificada no aumento das organizações indígenas: Em 1995, uma pesquisa do Instituto Socioambiental revelou a existência de 109 entidades. Em 2001, eram 318. Já em 2009, a pesquisa da UnB encontrou 486 organizações que lutam pelos direitos indígenas no Brasil.”[5]

            Voltando a refletir sobre os apontamentos de Baniwa, uma das maiores dificuldades para as comunidades indígenas hoje é se organizarem de acordo com o modelo burocrático do branco. Ou seja, “os processos administrativos, financeiros e burocráticos”, pelos quais as comunidades indígenas tem de se submeter para a concretização de seus direitos, “além de serem ininteligíveis à racionalidade indígena, confrontam e ferem valores culturais” desses povos “como solidariedade, generosidade e democracia”[6].
 
 
            Todavia, as lideranças indígenas tem mudado seu perfil, antes eram apenas mediadores entre a sociedade indígena e não indígena, hoje, cada vez mais precisam capacitar-se numa educação formal para estar a frente desses processos burocráticos. Para Oliveira, as lideranças indígenas

ampliaram suas funções, tendo hoje uma demanda cada vez mais intensa, não só para divulgar as necessidades de suas comunidades, mas negociar políticas e projetos em áreas específicas (a exemplo de saúde, educação, etnodesenvolvimento, meio-ambiente), inserindo-os na lógica de exigências formais dos projetos, relatórios e prestações de contas do Estado, de ONGs e agências humanitárias internacionais.”[7]

De toda forma, é bom deixar claro que grau de capacitação e educação formal não é item de exclusão na escolha das lideranças. Mas o que podemos perceber é o amadurecimento dessas lideranças, cada vez mais autônomas e, principalmente, mais a frente das defesas de seus direitos, sem intermediários. Fortalecendo assim sua presença no cenário político e nacional.



[1] BANIWA, Gersem. A conquista da cidadania indígena e o fantasma da tutela do Brasil contemporâneo. In: RAMOS, Alcida Rita (org). Constituições Nacionais e Povos Indígenas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. P.207
[2] Uma suruwahá que “decidiu abandonar seu povo para poder manter viva sua filha que sofre de paralisia cerebral. Hoje Muwaji vive na "Casa das Nações", uma comunidade indígena multicultural mantida pela ATINI no Distrito Federal.” Disponível em: < http://www.apmt.org.br/index.php/central-de-noticias/937-lei-muwaji-aprovada> Acesso em: 26/11/2013.
[3] HELM, Cecília Maria Vieira. A Etnografia, a Perícia e o Laudo Antropológico nos processos judiciais. Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais, Curitiba, 15: 5-17. Vol.1.2009. p.6.
[4] TURÓN, Simeón Jiménez. O papel aguenta tudo. In: RAMOS, Alcida Rita (org). Constituições Nacionais e Povos Indígenas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. P.23
[5] FULNI-Ô, Amazonir. Pesquisa recupera história do movimento indígena no Brasil. Disponível em: < http://www.unbciencia.unb.br/index.php?option=com_content&view=article&id=65:pesquisa-recupera-historia-do-movimento-indigena-no-brasil&catid=16:historia> Acesso em: 23/11/2013.
[6] BANIWA, Gersem. A conquista da cidadania indígena e o fantasma da tutela do Brasil contemporâneo. In: RAMOS, Alcida Rita (org). Constituições Nacionais e Povos Indígenas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. P.219
[7] OLIVEIRA, Kelly Emanuelly de. O Movimento Indígena no Nordeste: novos diálogos na construção da alteridade étnica. Disponível em: < http://www.coletiva.org/site/index.php?option=com_k2&view=item&id=39:o-movimento-ind%C3%ADgena-no-nordeste&tmpl=component&print=1 > Acesso em: 25/11/2013

Afinal, quem são "índios"?


 
 
O debate sobre a identidade étnica indígena, por mais blasê que possa parecer, ainda paira sobre as mentes das autoridades governamentais, acadêmicos e, em especial, sobre grande parte da população não indígena. O imaginário de que o indígena verdadeiro é aquele que vive nas matas, caça de arco e flecha e não possui aparato tecnológico moderno ainda predomina sobre grande parte da população e até mesmo dos governantes. Imaginar que há aldeias urbanas então, parece historinha pra boi dormir. Contudo, um dado interessante é que “quase 50% da população (indígena) não vive em aldeias rurais, mas está nas cidades”[1].

“ A conquista desses direitos, aliada à maior sensibilidade do povo e do governo brasileiros e melhorias dos serviços públicos destinados aos povos indígenas, contribui para o maior crescimento demográfico do segmento indígena, na medida em que muitos indígenas que negavam suas identidades étnicas, para não sofres discrimações e represálias ou até mesmo perseguições, voltaram a assumir o reconhecimento de suas identidades e direitos e lutar por eles.”[2]

            Assim, a grande diversidade de povos indígenas brasileiros contraria todos os  estudos do século XIX e XX em que, antropólogos afirmavam a total extinção dessas populações. Atualmente, cerca de 305 etnias, com mais de 180 línguas, vivem no Brasil. Os últimos Censos tem demonstrado que cerca de 800 mil pessoas se autodeclaram indígenas, pertencentes a alguma etnia ou não.

            Contudo, entre a lei e as boas ideias e a efetivação destas há um grande abismo. Quando enquadrados no que seria o indígena “modelo”- os viventes nos grotões da Amazônia, por exemplo - mesmo com todas as dificuldades para se estabelecer seus direitos constituídos no artigo 231 e 232, – fora os direitos estabelecidos nos tratados internacionais – ainda são levados mais em consideração do que os grupos étnicos “ressurgidos”. Em sua maioria, estes conhecidos como “caboclos” ou “bugres”, vivem a margem da sociedade, quase sempre em periferias, quando em cidades, abaixo da linha da pobreza. São os indígenas “problemas”.

            Os grupos étnicos “ressurgidos” são relativos ao fênomeno que os estudiosos chamam de etnogênese. Termo utilizado para a constituição de “novos grupos étnicos”[3], que vem ressurgindo desde meados da década de 70, especialmente no Nordeste. Entretanto, esses grupos emergentes constantemente sofrem descasos dos órgãos competentes.

“Ilustremos essa resistência da FUNAI através das declarações dos seus próprios diretores. Um presidente do órgão durante os anos 1990 chegou a dizer: ‘não é possível que comunidades pobres do Nordeste pintem a cara e simulem rituais só para serem considerados índios’. E o atual* presidente da FUNAI, Mércio Gomes, seguiu o mesmo raciocínio: ‘há organizações que estimulam comunidades de algumas áreas a reinvindicar a posse de terras sob a alegação de que são índios’.”[4]

Para os antropólogos, grupos étnicos eram aqueles que compartilham valores, formas e expressões culturais comuns. Entretanto, um mesmo grupo étnico poderia sofrer variações dependendo da situação ecológica e social que se encontrasse.[5] Com as contribuições de Barth e outros antropólogos, hoje “grupo étnico é ‘tipo organizacional’ e não ‘unidade de cultura’”[6]. Ou seja, a cultura está para o grupo e não o grupo para a cultura. Com o passar do tempo as relações culturais, valores e expressões podem se alterar, sem que o grupo deixe de sê-lo.[7] Para resumir, antropologicamente falando, os grupos étnicos “são unidades que emergem de mecanismos sociais de diferenciação estrutural entre grupos de interação”[8] e se identificam tal qual. Portanto, todas as coletividades estão em constante mudança e interação, então estabeleceu-se que importa é como o grupo se identifica e é identificado como tal.
 
Indígenas Xukuru em Ritual

A partir da década de 70 e com maior intesidade pós-Constituição de 88, vários grupos reunidos começaram a se autoidentificar como indígenas. Indígenas que nunca deixaram de ser, visto que no período colonial a prática do casamento entre negros e indígenas, indígenas e brancos, era fortemente utilizada, para a miscigenação e integração da pessoa indígena na unidade nacional, como também para a tomada de suas terras, já que “mestiço” para a mentalidade da época – e até hoje em vários casos – não era “índio”.

“Assim como no caso dos índios o Nordeste, os indígenas do médio Solimões são estigmatizados e definidos como misturados devido às suas relações com grupos de variadas origens e posições sociais, inclusive outros povos indígenas.”[9]

 

Essa “mistura” advém de um processo histórico intenso, onde os indígenas, foram aldeados, utilizados como mão de obra, obrigados a falar o português e viver conforme o modelo não indígena. Ou, particularmente, após terem ocultado durante séculos a identidade indígena, já que “ser índio nunca foi bom”[10]. Como também podem ter sido renegadas as políticas públicas e órgãos competentes, sentindo na pele o preconceito e a dor de ser indígena. Caso como o dos Pataxó no extremo sul baiano, a língua Pataxó quase se perdeu quando já no século XX, em 1953, houve um verdadeiro massacre na Aldeia Bom Jardim (atual Barra Velha). Muitos saíram para as cidades e nunca mais voltaram as raízes, os falantes da língua já não ensinavam aos seus filhos pois tinham com eles que ser índio não era coisa boa. Trabalhos intensos tem sido feitos para afirmação e preservação da cultura Pataxó.

Para Cunha[11],

“Os embates legais travam-se geralmente em torno da identidade indígena e aqui o modelo que chamei platônico da identidade é amplamente invocado tanto por parte dos fazendeiros quanto por parte dos próprios índios, forçados a corresponderem aos esteriótipos que se têm deles.”

Ou seja, os direitos só são efetivados quando o indígena, segue o modelo do indígena adotado, até hoje, em pleno século XXI, como o “verdadeiro”. Para que os direitos estabelecidos na Constituição e nos tratados internacionais, como a Convenção 169 da OIT, o índigena é obrigado a acionar sua identidade étnica sempre que vai a luta, ao Senado, em busca de justiça. Pois, sem a paramentação da identidade étnica o grupo não tem voz e nem vez. Na incrível mentalidade dos governantes e da população não indígena, “índio só é índio” se usar cocar, arco e flecha e andar nu. Sem compreender que mesmo que haja outras possibilidades de vivências de culturas, ele não deixa de ser indígena decorrente a quaisquer fatores. Sua cosmologia continua diferente da cosmologia do “branco”, suas tradições e processo histórico também.
 
 

            A importância de saber quem é indígena ou não, não é uma preocupação apenas antropológica, mas também jurídica. Villares[12] afirma que só através dessa identificação é que normas e políticas de proteção poderão ser concretizadas. É preciso conhecer determinado grupo étnico e compreender seus valores e cosmologia para garantir a preservação de sua organização social, tradições, crenças e principalmente direito originário sobre a terra. No entanto entre o que está no papel e a prática é bem diferente.

            Com a ratificação da Convenção 169 da OIT, em 2002, fica estabelecido que  a “consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que aplicam as disposições da presente Convenção”[13]. Assim tira do Estado a responsabilidade de “classificar” quem é “índio” e quem não é, deixando que a autoindentificação valha. E aí fica a pergunta: Por que, então, o Governo insiste em cobrar deles uma pertença étnica para provar que são indígenas?  Em 2003, no I Encontro Nacional dos Povos Indígenas em Luta pelo Reconhecimento Étnico e Territorial, os indígenas reinvindicam além de demarcação e regularização de suas áreas territoriais, exigiram ser chamados de “índios resistentes” e não “ressurgidos”, “emergidos”, para eliminar o estigma de que são menos índios.

“A tradição legalista e formalista, em especial colonialista de tais funcionários, associada a um forte senso comum sobre o que deve ser um índio (naturalidade e imemorialidade), tem funcionado como sério obstáculo à implementação de tais avanços teóricos e jurídicos.”[14]

            O caso é que mesmo resistentes, ressurgidos, independente do conceito utilizado para designá-los ou até mesmo os indígenas “verdadeiros”, encontram dificuldades para que os direitos essenciais em relação a suas comunidades e a pessoa indígena sejam efetivados. O maior deles é o direito à terra, seja ela tradicionalmente ou historicamente ocupada. De acordo com a Constituição Cidadã de 88 todas as terras seriam demarcadas em até 5 anos e o que vemos é uma lentidão no processo de demarcação e regulamentação dessas terras que se arrasta por mais de 20 anos. Principalmente no início do Governo Lula para cá.



[1] VAZ FILHO, Florêncio Almeida. Identidade Indígena no Brasil hoje. Disponível em: <http://www.alasru.org/wp-content/uploads/2011/12/25-GT-Flor%C3%AAncio-Almeida-Vaz-Filho.pdf> Acesso em: 16/09/2012
[2] BANIWA, Gersem. A conquista da cidadania indígena e o fantasma da tutela do Brasil contemporâneo. In: RAMOS, Alcida Rita (org). Constituições Nacionais e Povos Indígenas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. P.207
[3] ARRUTI, José Maurício. Indianidade: etnogênses indígenas. In: Povos indígenas no Brasil. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006.
[4] VAZ FILHO, Florêncio Almeida. Identidade Indígena no Brasil hoje. Disponível em: <http://www.alasru.org/wp-content/uploads/2011/12/25-GT-Flor%C3%AAncio-Almeida-Vaz-Filho.pdf> Acesso em: 16/09/2012. * informação retirada de LACERDA, Rosane. Povos indígenas – A maior das dívidas. Acessada pelo autor em: 17/09/2006.
[5] CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012. P.106
[6] VAZ FILHO, Florêncio Almeida. Identidade Indígena no Brasil hoje. 2011. Disponível em: <http://www.alasru.org/wp-content/uploads/2011/12/25-GT-Flor%C3%AAncio-Almeida-Vaz-Filho.pdf> Acesso em: 16/09/2012
[7] CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012. P.108
[8] ARRUTI, José Maurício. Indianidade: etnogêneses indígenas. In: Povos indígenas no Brasil. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006.
[9] COSTA E SANTOS, Rafael Barbi e OLIVEIRA E SOUZA, Mariana. “Todo amazonense é índio”: o argumento inclusivo dos indígenas emergentes no médio Solimões. Disponível em: < http://www.mamiraua.org.br/cms/content/public/documents/publicacao/12c9632c-14b2-40eb-8c49-bb9de467f890_santos-e-souza---todo-amazonense-e-indio---o-argumento-inclusivo-dos-indigenas-emergentes-no-medio-solimoes.pdf > Acesso em:27/11/2013
[10] Seu Nilson Pataxó. Aldeia Geru Tucunã. 09/2013.
[11] CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012. P.124
[12] VILLARES, Luiz Fernando. Direito e povos indígenas. Curitiba: Juruá, 2009. p.28
[13] Artigo 1º, 2º páragrafo. Convenção 169 da OIT.
[14] ARRUTI, José Maurício. Indianidade: etnogêneses indígenas. In: Povos indígenas no Brasil. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

O mito da Amesca: Tradição e Afirmação da Cultura Pataxó*

*parte do artigo escrito juntamente com Maiara Cordeiro
 
 
Awê

Pataxó é água da chuva
batendo na terra, nas pedras,
e indo embora para o rio 
e o mar.[1]
 
Txôpai, o Deus guerreiro e da água, é a principal divindade na cosmologia Pataxó. Ele foi o primeiro a viver na terra e aprender tudo sobre ela, desde sua fauna a sua flora. Quando os Pataxó surgem é ele quem vai ensinar toda a sabedoria da mata.
Os Pataxó possuem um conhecimento acurado sobre a terra e os diferentes ambientes de seu território. A percepção e o conhecimento que os Pataxó possuem dos ambientes é fruto de uma longa história de relação com os diversos seres e entidades que coabitam com eles os espaços, conhecimentos que se originam não apenas da experiência produtiva na busca por alimento, mas de uma vivência emotiva de reflexão e de experimentação que gera uma relação de responsabilidade e pertença ao território.[2]
Filhos das águas, os Pataxó contam sua origem evidenciando a sua relação estreita com a mesma[3]. O próprio nome PATAXÓ sugere o barulho das águas do mar no ir e vir das ondas. De acordo com Paes[4], entre os povos indígenas do tronco linguístico macro jê, a água é um elemento identificado com características propiciatórias para o desenvolvimento tanto físico quanto psíquico. Carneiro da Cunha[5] afirma que “a água marca o amadurecimento rápido e a inserção na sociedade, o banho de rio assinala, entre várias tribos[6] jê, o fim do luto e da reclusão dos matadores, que assim retornam à sua vida social”.
O presente artigo é um ensaio sobre a relação dos Pataxó com a natureza. Destacando o mito da Amesca, uma árvore de grande importância cultural e cosmológica – com propriedades que servem tanto no cotidiano da aldeia quanto para os momentos ritualísticos – e a sua relação direta com a Festa das Águas, um dos rituais mais importantes para a cultura deste povo. Vale ressaltar que na atual conjuntura os Pataxó passam por um processo de resignificação e reafirmação de sua identidade..
Este estudo teve participação significante de Tamaru, professor de cultura na aldeia Geru Tucunã. No qual, contribuiu para a compreensão desta relação imprescindível da amesca e a comunidade. Devemos destacar que por conta de sua sacralidade algumas informações são omitidas para estudo ou para não indígenas, sendo reservados apenas para o grupo. Assim garantem a preservação de seus aspectos culturais mais íntimos para as gerações futuras, pelo bem da cultura e memória Pataxó.
 

Cacique Bayara - Aldeia Geru Tucunã
A Luta atual
            A mobilidade espacial dos Pataxó era um elemento muito forte na cultura. Não estabeleciam aldeias por mais de três a quatro meses. Nayara Pataxó[1] deixa bem claro que conhecedores das matas e de seu território não passavam fome. Entretanto, com o tempo todas as terras foram sendo invadidas, as matas foram sumidas devido ao desmatamento. O aldeamento forçado de 1861 também transformou os aspectos culturais dos Pataxó.
 
            Assim como muitas outras etnias indígenas brasileiras, os Pataxó também sofreram com o processo de integração nacional como outras pressões que ameaçaram seu povo, foram expulsos de seus territórios e procuraram se readaptar para sobreviver. “Por meio da elaboração e execução de diferentes políticas indígenas, possibilitando aos índios a reelaboração de sua cultura, a reconstrução de suas identidades, a ampliação de suas redes de solidariedade e a sua permanência física e cultural enquanto grupo social”.[2]
 
            Com a constituição de 1988 o cenário político se torna mais favorável para os direitos das minorias, é vista como um marco histórico no âmbito do surgimento dos movimentos indígenas brasileiros e a busca por autoafirmação de sua identidade étnica.
 
            Levando em consideração o caso os Pataxó “vivem um momento de reelaboração dos “traços culturais”, que remetem a um passado comum, às continuidades e descontinuidades da narrativa histórica construída em torno do contato com a sociedade envolvente”.[3] Dessa forma  um dos marcadores étnicos mais importantes da cultura Pataxó é a utilização da Amesca.
 
 

Defumando com Amesca 

Onde há Pataxó, há Amesca

 

Nem que seja um pouquinho, nem que seja uma árvore. A Amesca é uma planta insubstituível na Cultura Pataxó. Tamanho é seu grau de importância que sua utilização vai desde o uso cotidiano a suas práticas sagradas. Tão relevante que existe até um mito sobre sua origem.

A Amesca era uma índia pataxó que desde criança foi escolhida pelo seu povo para ser uma grande guerreira, por isso ela não podia se casar e ter filhos. Passados muitos anos, Amesca cresceu e se tornou uma jovem muito bonita e logo se apaixonou por um índio que também era Pataxó. Logo Amesca engravidou e até então estava tudo bem, mas com o passar do tempo, Amesca descobriu que estava grávida de gêmeos. Segundo os mais velhos da sua aldeia, quando uma índia ficasse grávida de gêmeos teria que sacrificar um dos dois, pois acreditavam que um deles viria para praticar o bem e o outro para fazer o mal. Amesca não queria que seu filho morresse e então passou os nove meses chorando e pensando no que ela iria fazer para salvar seu filho. No dia do seu parto, Amesca deu à luz aos seus dois filhos e morreu. Assim, os mais velhos acreditaram que a maldição morreu com ela e que seu filho estava livre da maldição. Então o seu povo enterrou Amesca e foi embora daquele lugar. Passou-se muito tempo até que os Pataxó voltaram ao lugar onde tinham enterrado Amesca e em cima do seu túmulo viram que tinha nascido um grande pé de árvore. Eles colocaram o nome dessa árvore de Amesca. Essa árvore soltava uma resina branca parecida com uma lágrima e dava duas frutinhas grudadas e muito doces. Os índios logo observaram que essa resina era as lágrimas da índia e que os frutos eram os seus filhos gêmeos.[1]

 

Ensinado pelos antepassados, todos da aldeia a utilizam e em tudo se aproveita da Amesca: suas folhas, seus frutos, a resina que a planta produz. Segundo Tamaru[2], professor de Cultura da Aldeia Geru Tucunã, ela pode ser encontrada “em duas qualidades: uma solta só um pó preto e a outra resina”, que pode ser branca ou preta. A mais utilizada é a que solta a resina branca.

 

Como uso medicial, de suas folhas se faz chá, a própria resina quando dissolvida na água é boa para gastrite. A “seiva serve para combater dores de cabeça, dor de dente, sinusite, dor de barriga e outros”[3]. Outro uso é na lamparina, nas comunidades que não tinham ou não tem acesso à energia elétrica. Seus frutos servem de alimento e são muito saborosos. O artesanato também a utiliza para a confecção de pequenos objetos que servem como ornamentos para enfeitar a casa, que são vendidos principalmente para turistas e pessoas que visitam a aldeia.

 

Mas, sobretudo, o uso da seiva da Amesca, a resina, é utilizado em práticas de incensar: nas orações para proteção dos encantados da mata e também nos rituais sagrados para chamar os espíritos bons e guerreiros para dentro da Aldeia e principalmente, para uma limpeza espiritual.  Como afirma Tamaru, “sem o cheiro da Amesca não tem ritual”. E são vários os rituais sagrados que a utilizam, como a importantíssima Festa das Águas, o Awê, rituais de pajelança, entre outras. Até as parteiras utilizam dessa tão significativa planta nos trabalhos de parto. Tão considerável que “um dos cuidados com a casa consiste na defumação, que pode ser tanto com plantas sagradas encontradas nos quintais, como com capim aruanda encontrado, ou com a amescla.”[4]Utilizada também como fumo ritual, outras plantas são adicionadas ao cachimbo, o capim de aruanda, alfazema, alecrim e amburana.

 

A Festa das Águas

 

           
Todo ano no mês de outubro a comunidade Pataxó se reúne para um dos mais essenciais rituais de sua cultura: A festa das águas. Cacique Romildo[5], deixa claro que desde seus antepassados essa festa ritualística e sagrada já era realizada. É um momento de evocação dos espíritos bons e guerreiros da Mata, onde os protetores da floresta, como o Pai da Mata e Hamãy vem à aldeia e é um momento de agradecer e comemorar o tempo da colheita a Txôpai - Deus das águas.

            Na Festa das Águas, o uso da Amesca é indispensável, pois ela é utilizada para a purificação do espaço e dos corpos presentes. Outro grande destaque é a figura do pajé, que fará a ligação aldeia – mundo espiritual. O uso da Amesca, como descrito anteriormente, é de extrema importância por ser a partir dela a vinda dos espíritos bons e guerreiros da mata para comemorar juntamente com a Aldeia. Funciona como um sinalizador que os Pataxó possuem para atrair os espíritos a se achegarem.

 

Vale ressaltar que eles são um povo que tem uma estreita relação com a água, tanto que sua principal divindade é o Deus das Águas, ademais a sua própria origem está na água. A escolha do período, além de ter relação com os antepassados também associa-se ao fato de ter ser tempo da colheita, como relata Cacique Romildo, “é o início das águas, início de novas vidas, início da fartura”. Dessa forma podemos perceber como a cultura Pataxó está intimamente ligada com a natureza, o meio ambiente e os seres encantados que o circunda. Os Pataxó utilizam da própria natureza (a Amesca) para poder entrar em contato com todos os outros mundos (cultura) e assim manter a harmonia entre animais, espíritos da mata e encantados. Não há outro modo de viver Pataxó que não esteja relacionado com a ligação Natureza – Cultura.

 

A realização do rito promove a transmissão cultural às gerações futuras. Atualmente a cultura Pataxó é mantida e fortalecida através dos rituais e momentos culturais na aldeia. Reafirmando que o povo Pataxó existe e resiste, mesmo com todo o histórico de desapropriação de seu território, quando na década de 60 tinham sido dados como extintos ou totalmente “integrados” a nação. Contrariando assim a afirmativa de Darcy Ribeiro[6].



ONDE HÁ PATAXÓ, HÁ AMESCA
[1] Povo Pataxó. Inventário Cultural Pataxó: tradições do povo Pataxó do Extremo Sul da Bahia. Bahia: Atxohã / Instituto Tribos Jovens (ITJ), 2011. Pags.97,98
[2] Informações cedidas por Tamaru, professor de Cultura na Aldeia Geru Tucunã, em conversa realizada no dia 20 de outubro de 2013, por celular.
[3] Idem. P.60
[4] Cardoso, Thiago Mota; Pinheiro, Maíra Bueno(Orgs.). Aragwaksã: Plano de Gestão Territorial do povo Pataxó de Barra Velha e Águas Belas.- Brasília: FUNAI/CGMT/CGETNO/CGGAM,2012.p.46
[5] Festa das Águas – Pataxó. Entrevista com Cacique Romildo, Vice Cacique Soin. 3’20”. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=DsBWUgMJKbE. Acesso em 21 outubro 2013.
[6] RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização. Editora Vozes LTDA, 1968. P.92.



A LUTA ATUAL
[1] Índios Pataxós e a terra do descobrimento. Direção: Paula Saldanha, Roberto Verneck. Produção: Pedro S. Werneck. Documentário, 25’26”. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=Vblr6PrWYs4. Acesso em 20 outubro de 2013.
[2]Povo Pataxó. Inventário Cultural Pataxó: tradições do povo Pataxó do Extremo Sul da Bahia. Bahia: Atxohã / Instituto Tribos Jovens (ITJ), 2011. P.15.
[3] Llanes Guardiola, Carolina. Autoridades, Lideranças e Administração de Conflitos na Aldeia Indígena Pataxó de Barra Velha, Bahia / Carolina Llanes Guardiola, UFF/ Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Niterói, 2011. p.25


INTRODUÇÃO
[1] PATAXÓ, Kanátyo. Itôhã e Txôpai. Programa de implantação das escolas indígenas de Minas Gerais. SEE/MG Belo Horizonte, 1997
[2] Cardoso, Thiago Mota; Pinheiro, Maíra Bueno(Orgs.). Aragwaksã: Plano de Gestão Territorial do povo Pataxó de Barra Velha e Águas Belas.- Brasília: FUNAI/CGMT/CGETNO/CGGAM,2012.p.37
[3] Há dois mitos sobre a origem: um está presente no livro de referência nº 1 e o outro está em Povo Pataxó. Inventário Cultural Pataxó: tradições do povo Pataxó do Extremo Sul da Bahia. Bahia: Atxohã / Instituto Tribos Jovens (ITJ), 2011. P.104
[4] PAES, Francisco Simões. Rastros do espírito: fragmentos para a leitura de algumas fotografias dos Ramkokamekrá por Curt Nimuendaju. Rev. Antropol. [online]. 2004, vol.47, n.1, pp. 267-307. ISSN 0034-7701.
[5] CARNEIRO DA CUNHA, Manoela. Lógica do mito e da ação: o movimento messiânico canela de 1963. In: Antropologia do Brasil, São Paulo, Brasiliense.1987. p. 34
[6] Grifo nosso. O termo “tribo” não é mais utilizado desde a Convenção 169 da OIT, entretanto o texto original utiliza-se dessa palavra.