segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Como era gostoso meu francês: Vida, Morte e Antropofagismo na sociedade Tupinambá







Em meados da década de 60, Nelson Pereira dos Santos, começa a criar o que viria a ser um dos 25 filmes mais vistos no período de 68-72. Como era gostoso meu francês, filme de 1971, que retrata o Brasil de 1594, corresponde “à perspectiva etnográfica e histórica, à poética modernista e a sua reedição no cinema novo tropicalista”[1]. Para Ailton Krenak[2], grande líder indígena, o filme “é um dos depoimentos mais positivos sobre o encontro dos índios e dos brancos no período da colonização, porque o filme problematiza os conflitos, no lugar de determinar vencedores e vencidos”.  
De fato, percebi não a imagem de um indígena sendo ludibriado ou enganado pelos europeus. Apesar de o filme ser uma sátira, vi um indígena que sabia muito bem lidar com o sistema de trocas, onde visava também seu ganho. Sem aquela eterna dicotomia “o bom e o mau selvagem”, Nelson Pereira, através de relatos recolhidos e tão minuciosamente estudados, tenta trazer ao público o indígena mais perto do real possível, o humano, com  “dados suficientes para repensar as imagens e relações construídas entre europeus e indígenas”[3].
Mas o que me interessa refletir – apesar de toda a problemática do filme ser extremamente importante – é o ritual antropofágico dos Tupinambá. O filme mostra apenas uma parcela de toda a complexidade que envolve a ritualística canibal desse povo. Para a análise, é necessário fazer algumas considerações que implicarão numa compreensão maior acerca do pensamento Tupinambá.
A cosmologia – teoria do mundo – sugestiona o indivíduo. Como os Tupinambá enxergam seu próprio mundo, só pode ser compreendida em sua totalidade, se nós próprios fossemos Tupinambá quinhentistas – já que com o passar dos séculos, a cultura Tupinambá foi se modificando. E símbolos e significados só fazem sentido dentro da própria cadeia simbólica, dentro da própria dinâmica cultural que o grupo está inserido. Entretanto, o filme nos mostra, mesmo que de forma um tanto exagerada em alguns momentos, a importância e a finalidade cosmológica que o ritual tinha para essa etnia. E através de relatos de viajantes, religiosos e outras personalidades que tiveram contato com os Tupinambá na época, podemos entender seu estilo social de vida e sua cultura.
Os Tupinambá, viventes em grande parte do litoral brasileiro, guerreavam incessantemente com seus contrários, seus inimigos. Eles não procuravam estender seus domínios territoriais e a constante guerra era somente pela honra e a vingança. Prestigio recebiam os melhores guerreiros. Cunhambebe, como mostrado no filme, foi na vida real um grande líder Tupinambá. Para estes, se tornava o líder da aldeia aquele que tinha mais mulheres e mais “nomes” recebesse pelas mortes ritualísticas feitas. A sociedade Tupinambá tinha certa hierarquização. Fausto[4] afirma que não houve o sistema de cacicado, contrapondo a ideia de alguns teóricos. Contudo, o que havia eram as alianças entre aldeias e chefes Tupinambá, o que reforçavam os laços de amizade como também inimizade.
Como natural da família linguística Tupi-Guarani, os Tupinambá visualizavam a “Terra sem mal”, uma terra com fartura e sem labuta. Portanto, todas as suas ações visavam chegar ao lugar da verdadeira felicidade. Para tal, a cosmologia Tupinambá se estabeleceu em dois pontos principais: Guerra e Vingança.
Os Tupinambá eternos inimigos dos Tupiniquim, guerreavam e faziam prisioneiros os seus inimigos. Esse aprisionamento correspondia à primeira parte de uma ritualística que condicionava a sociedade Tupinambá. A guerra e a continuidade da vingança era fundamental para essa sociedade. O que não significava o aniquilamento total do inimigo, mas como afirma Fausto, a extração da “mais valia” deste. 

No filme, o francês é confundido com um português[5] e por isso é levado à aldeia como prisioneiro e preparado para o ritual. Ele possui conhecimentos sobre a pólvora e os canhões, qualidades que os Tupinambá admiravam muito. Lá, ele recebe todas as honrarias de um guerreiro, inclusive uma mulher. Seboipep, a sobrinha do cacique Cunhambebe, lhe foi dada como esposa, transformando-se assim na chave que abre o mundo Tupinambá para o francês. Assim, o estrangeiro passa a conviver normalmente na aldeia, como se fosse ele próprio um Tupinambá. Passados oito meses, é chegada a hora do ritual. Apesar do pânico que o corrói por dentro, Seboipep é tão sedutora em sua explicação sobre o ritual, que o leva a compreender a importância deste e de sua morte. Além de absorver suas qualidades como homem, ele representaria a vingança sobre os portugueses que mataram tantos Tupinambá. Como também vingar a morte do próprio marido de Seboipep, morto pelos lusos europeus.
Pois bem, os Tupinambá tinham como o destino o outro. Sua perspectiva era aglutinar o que fosse bom do que era tão bom quanto eles. Seja nas trocas comerciais, nas trocas de conhecimento ou até mesmo nos rituais antropofágicos. Por essa mentalidade de alteridade os Tupinambá, como as outras etnias Tupi Guarani, facilmente se relacionaram com os europeus na época do contato. O outro, o inimigo só o é por ter qualidades e essas qualidades são passíveis de serem transferidas.
O ritual antropofágico Tupinambá não é se não a prática material desse pensamento. E esse pensamento se remete pelo Mito do Jaguar, inimigo em potencial de tantas etnias.
“No mito, de fato, ao jaguar, o caçador que não pode ser caçado, se substitui o homem (caçador e caça ao mesmo tempo), obtendo em troca o fogo, que unicamente pode dar fundamento à instituição do sacrifício (ritual), através de uma mulher (a caça que não pode caçar), enquanto instrumento de dádiva e troca que garante a reprodução social.” (AGNOLIM, 2002)
Já no rito, a materialização e ressignificação do mito:
“(...)ao invés, é posto em cena o prisioneiro – que representa a caça que (antes) era também caçador – e um capturador – caçador, mas que pode (...) tornar-se caça (...).” (AGNOLIM, 2002)
No rito, o papel da mulher também é fundamental, pois ela chora pelo prisioneiro (que se tornou seu marido), mas também come seu marido prisioneiro para vingar a morte de seus antepassados. No mito, o jaguar, dono do fogo, funda a cultura. No rito, o fogo é substituído pela a alteridade humana, que interage afim de alimentar o processo cultural. O homem, por sua vez, se transforma em jaguar – o caçador que não pode ser caçado – no momento ritual.
Hans Staden, alemão que se tornou prisioneiro dos Tupinambá durante nove meses no ano de 1550, afirma:
“Durante isto Cunhambebe tinha à sua frente um grande cesto cheio de carne humana. Comia de uma perna, segurou-a diante da boca e perguntou-me se também queria comer. Respondi: "Um animal irracional não come um outro parceiro, e um homem deve devorar um outro homem?". Mordeu-a então e disse : "Jauára ichê". Sou um jaguar. Está gostoso.” (Staden, 1974)
 O ritual antropofágico corresponde a “transubstanciação do inimigo, incorporando como alteridade”[6].  A relação de Alteridade é o que conduz o pensamento Tupinambá. “Trata-se do homem que se torna, dentro de uma estrutura altamente ritualizada, alimento para outro homem, o qual, por sua vez, vive na perspectiva, altamente significativa para sua cultura, de se tornar, um dia, ele mesmo alimento para outros.”[7]
Relatos de religiosos da época afirmam que não havia outro ritual tão importante quanto este. Anchieta (carta de 1593) escreve “é impossível que possam viver sem matar”. E ele não estava errado. A constante guerra e a infinita vingança era uma forma de alcançarem glórias e a terra sem mal. E o culto aos antepassados, fortemente arraigado na cosmologia Tupinambá, sugere que o sacrifício não era causado pela ação dos inimigos, mas pela própria exigência dos espíritos dos parentes mortos. Ou seja, o ritual antropofágico vai além do mundo terreno, ele atinge também a esfera espiritual. Agnolim afirma que, baseado nos estudos de Florestan Fernandes, o ritual antropofágico era também um rito de passagem. O jovem rapaz só poderia se casar e se tornar um “avá” verdadeiro se fosse o matador do cativo.
Seguindo a descrição de Fausto[8] e demonstrado no filme, depois da guerra, os Tupinambá voltavam com três ou quatro cativos, estes reconhecidos como os melhores guerreiros de seus contrários, a princípio eram recebidos com hostilidade. Falava-se da necessidade de vingar seus antepassados com a morte e o antropofagismo. Passada essa etapa, o cativo morava com seu captor, este poderia dar-lhe uma filha ou irmã como esposa, ou presenteá-lo à outrem, por exemplo, a seu filho que ao mata-lo receberia prestígios, esposas, fama. Agnolim nos chama a atenção que a guerra e a vingança se resumiam em: troca. Essas trocas poderiam ser políticas (alianças entre aldeias ou mesmo na própria aldeia) ou como no caso, o inimigo recebia as honras dos antepassados que estes foram mortos por seu povo (do inimigo), em troca ele daria sua vida, mas em troca teria uma morte honrosa e chegaria livremente a terra sem mal.

O preparo do cauim, as danças, e a “re-inimização”, iniciava o ritual sacrificial. As aldeias aliadas iam chegando, o cativo sendo preparado. Na manhã seguinte ao término do cauim[9], iniciava-se uma outra fase do ritual: a morte. O matador vestido com uma capa de penas vermelhas se comportava como uma ave de rapina e iniciava o diálogo ritual. Esse diálogo era basicamente o matador justificando a morte da vítima, ou seja, pela vingança e a vítima mostrava valentia, dizendo que sua morte seria vingada. Alguns objetos eram entregues a vítima que poderia jogar na plateia, em seguida a bordunada. O sangue, os órgãos e todas as partes da vítima eram preparados, de formas diversas, para diferentes grupos. Por exemplo, as mulheres ficavam destinadas uma espécie de sopa dos órgãos. O matador não come nada de sua vítima, entra em resguardo, no qual se abstêm de certos alimentos, é despossuído de seus bens, escarificado, tatuado e recebe um novo nome que só será revelado num ritual de caiunagem, onde marca o fim do resguardo.
Enfim, poderíamos pensar que a vítima se entregou a contragosto a morte, mas não é assim. Ao que pude perceber na etnografia levantada, a vítima espera por essa morte, pois ela é heroica, sem contar que, elimina a porção corruptível de si, o que faz com que vá direto para a Terra sem mal. Era “digno e glorioso, da vida de um guerreiro consistir em ser assimilado pelo corpo vivente do inimigo”[10]. A “má morte” era morrer de causa natural ou de doença, já a boa morte é servir de alimento ao inimigo. E sua morte não ficaria isenta de vingança – o que contribuiria para manter a necessidade vital da cultura Tupi, continuar alimentando a própria cultura através da mí


[1] MOTA, Regina. Audiovisual, cultura e alteridade em Como era gostoso o meu francês. Disponível em: <http://www.fabricadofuturo.org.br/fabricav4/ear_arquivos/comoeragostoso.pdf> Acesso em: 15/10/2013.
[2] Retirado do Artigo de Mota.
[3] FARIAS, Juliana Barreto. Os Tupinambá sob a ótica feminina. Disponível em: <http://www.ufrb.edu.br/cinecachoeira/2012/11/como-era-gostoso-o-meu-frances/> Acesso em: 15/10/2013
[4] FAUSTO, Carlos. Fragmentos de História e Cultura Tupinambá. Da etnologia como instrumento crítico de conhecimento etno-histórico. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manoela (Org). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP, 1992.p.388
[5] Os Tupiniquim, inimigos dos Tupinambá, eram aliados dos Portugueses, logo eram vistos pelos Tupinambá como inimigos também.
[6] MOTA, Regina.
[7] AGNOLIM, Adone. Antropofagia Ritual e identidade cultural entre os Tupinambá. In: Revista de Antropologia Vol.45 nº 1. São Paulo, 2002.
[8] FAUSTO, 1992: 391-393.
[9] Fausto afirma que bebida e comida não se misturavam. Era cantar e beber e depois matar e comer.
[10] Agnolim, 2002.