Em
meados da década de 60, Nelson Pereira dos Santos, começa a criar o que viria a
ser um dos 25 filmes mais vistos no período de 68-72. Como era gostoso meu francês, filme de 1971, que retrata o Brasil
de 1594, corresponde “à perspectiva etnográfica e histórica, à poética
modernista e a sua reedição no cinema novo tropicalista”[1].
Para Ailton Krenak[2],
grande líder indígena, o filme “é um dos depoimentos mais positivos sobre o
encontro dos índios e dos brancos no período da colonização, porque o filme
problematiza os conflitos, no lugar de determinar vencedores e vencidos”.
De fato, percebi
não a imagem de um indígena sendo ludibriado ou enganado pelos europeus. Apesar
de o filme ser uma sátira, vi um indígena que sabia muito bem lidar com o
sistema de trocas, onde visava também seu ganho. Sem aquela eterna dicotomia “o
bom e o mau selvagem”, Nelson Pereira, através de relatos recolhidos e tão minuciosamente
estudados, tenta trazer ao público o indígena mais perto do real possível, o humano, com “dados suficientes para repensar as imagens e
relações construídas entre europeus e indígenas”[3].
Mas o que
me interessa refletir – apesar de toda a problemática do filme ser extremamente
importante – é o ritual antropofágico dos Tupinambá. O filme mostra apenas uma
parcela de toda a complexidade que envolve a ritualística canibal desse povo.
Para a análise, é necessário fazer algumas considerações que implicarão numa
compreensão maior acerca do pensamento Tupinambá.
A
cosmologia – teoria do mundo – sugestiona o indivíduo. Como os Tupinambá
enxergam seu próprio mundo, só pode ser compreendida em sua totalidade, se nós
próprios fossemos Tupinambá quinhentistas – já que com o passar dos séculos, a
cultura Tupinambá foi se modificando. E símbolos e significados só fazem
sentido dentro da própria cadeia simbólica, dentro da própria dinâmica cultural
que o grupo está inserido. Entretanto, o filme nos mostra, mesmo que de forma
um tanto exagerada em alguns momentos, a importância e a finalidade cosmológica
que o ritual tinha para essa etnia. E através de relatos de viajantes,
religiosos e outras personalidades que tiveram contato com os Tupinambá na
época, podemos entender seu estilo social de vida e sua cultura.
Os
Tupinambá, viventes em grande parte do litoral brasileiro, guerreavam
incessantemente com seus contrários, seus inimigos. Eles não procuravam
estender seus domínios territoriais e a constante guerra era somente pela honra
e a vingança. Prestigio recebiam os melhores guerreiros. Cunhambebe, como
mostrado no filme, foi na vida real um grande líder Tupinambá. Para estes, se
tornava o líder da aldeia aquele que tinha mais mulheres e mais “nomes”
recebesse pelas mortes ritualísticas feitas. A sociedade Tupinambá tinha certa
hierarquização. Fausto[4]
afirma que não houve o sistema de cacicado, contrapondo a ideia de alguns
teóricos. Contudo, o que havia eram as alianças entre aldeias e chefes
Tupinambá, o que reforçavam os laços de amizade como também inimizade.
Como
natural da família linguística Tupi-Guarani, os Tupinambá visualizavam a “Terra
sem mal”, uma terra com fartura e sem labuta. Portanto, todas as suas ações
visavam chegar ao lugar da verdadeira felicidade. Para tal, a cosmologia
Tupinambá se estabeleceu em dois pontos principais: Guerra e Vingança.
Os
Tupinambá eternos inimigos dos Tupiniquim, guerreavam e faziam prisioneiros os
seus inimigos. Esse aprisionamento correspondia à primeira parte de uma ritualística
que condicionava a sociedade Tupinambá. A guerra e a continuidade da vingança
era fundamental para essa sociedade. O que não significava o aniquilamento
total do inimigo, mas como afirma Fausto, a extração da “mais valia” deste.
No filme,
o francês é confundido com um português[5]
e por isso é levado à aldeia como prisioneiro e preparado para o ritual. Ele
possui conhecimentos sobre a pólvora e os canhões, qualidades que os Tupinambá admiravam muito. Lá, ele recebe todas
as honrarias de um guerreiro, inclusive uma mulher. Seboipep, a sobrinha do
cacique Cunhambebe, lhe foi dada como esposa, transformando-se assim na chave
que abre o mundo Tupinambá para o francês. Assim, o estrangeiro passa a
conviver normalmente na aldeia, como se fosse ele próprio um Tupinambá. Passados
oito meses, é chegada a hora do ritual. Apesar do pânico que o corrói por
dentro, Seboipep é tão sedutora em sua explicação sobre o ritual, que o leva a compreender
a importância deste e de sua morte. Além de absorver suas qualidades como
homem, ele representaria a vingança sobre os portugueses que mataram tantos
Tupinambá. Como também vingar a morte do próprio marido de Seboipep, morto pelos
lusos europeus.
Pois bem,
os Tupinambá tinham como o destino o outro. Sua perspectiva era aglutinar o que
fosse bom do que era tão bom quanto eles. Seja nas trocas comerciais, nas
trocas de conhecimento ou até mesmo nos rituais antropofágicos. Por essa
mentalidade de alteridade os Tupinambá, como as outras etnias Tupi Guarani, facilmente
se relacionaram com os europeus na época do contato. O outro, o inimigo só o é
por ter qualidades e essas qualidades são passíveis de serem transferidas.
O ritual
antropofágico Tupinambá não é se não a prática material desse pensamento. E
esse pensamento se remete pelo Mito do Jaguar, inimigo em potencial de tantas
etnias.
“No mito, de fato, ao jaguar, o
caçador que não pode ser caçado, se substitui o homem (caçador e caça ao mesmo
tempo), obtendo em troca o fogo, que unicamente pode dar fundamento à
instituição do sacrifício (ritual), através de uma mulher (a caça que não pode
caçar), enquanto instrumento de dádiva e troca que garante a reprodução social.”
(AGNOLIM, 2002)
Já no
rito, a materialização e ressignificação do mito:
“(...)ao invés, é posto em cena o
prisioneiro – que representa a caça que (antes) era também caçador – e um
capturador – caçador, mas que pode (...) tornar-se caça (...).” (AGNOLIM, 2002)
No rito,
o papel da mulher também é fundamental, pois ela chora pelo prisioneiro (que se
tornou seu marido), mas também come seu marido prisioneiro para vingar a morte
de seus antepassados. No mito, o jaguar, dono do fogo, funda a cultura. No
rito, o fogo é substituído pela a alteridade humana, que interage afim de
alimentar o processo cultural. O homem, por sua vez, se transforma em jaguar –
o caçador que não pode ser caçado – no momento ritual.
Hans
Staden, alemão que se tornou prisioneiro dos Tupinambá durante nove meses no
ano de 1550, afirma:
“Durante isto
Cunhambebe tinha à sua frente um grande cesto cheio de carne humana. Comia de
uma perna, segurou-a diante da boca e perguntou-me se também queria comer.
Respondi: "Um animal irracional não come um outro parceiro, e um homem
deve devorar um outro homem?". Mordeu-a então e disse : "Jauára
ichê". Sou um jaguar. Está gostoso.” (Staden, 1974)
O ritual antropofágico corresponde a “transubstanciação
do inimigo, incorporando como alteridade”[6].
A relação de Alteridade é o que conduz o
pensamento Tupinambá. “Trata-se do homem que se torna, dentro de uma estrutura
altamente ritualizada, alimento para outro homem, o qual, por sua vez, vive na
perspectiva, altamente significativa para sua cultura, de se tornar, um dia,
ele mesmo alimento para outros.”[7]
Relatos
de religiosos da época afirmam que não havia outro ritual tão importante quanto
este. Anchieta (carta de 1593) escreve “é impossível que possam viver sem
matar”. E ele não estava errado. A constante guerra e a infinita vingança era
uma forma de alcançarem glórias e a terra sem mal. E o culto aos antepassados,
fortemente arraigado na cosmologia Tupinambá, sugere que o sacrifício não era
causado pela ação dos inimigos, mas pela própria exigência dos espíritos dos
parentes mortos. Ou seja, o ritual antropofágico vai além do mundo terreno, ele
atinge também a esfera espiritual. Agnolim afirma que, baseado nos estudos de
Florestan Fernandes, o ritual antropofágico era também um rito de passagem. O
jovem rapaz só poderia se casar e se tornar um “avá” verdadeiro se fosse o
matador do cativo.
Seguindo
a descrição de Fausto[8]
e demonstrado no filme, depois da guerra, os Tupinambá voltavam com três ou
quatro cativos, estes reconhecidos como os melhores guerreiros de seus
contrários, a princípio eram recebidos com hostilidade. Falava-se da
necessidade de vingar seus antepassados com a morte e o antropofagismo. Passada
essa etapa, o cativo morava com seu captor, este poderia dar-lhe uma filha ou
irmã como esposa, ou presenteá-lo à outrem, por exemplo, a seu filho que ao
mata-lo receberia prestígios, esposas, fama. Agnolim nos chama a atenção que a
guerra e a vingança se resumiam em: troca. Essas trocas poderiam ser políticas
(alianças entre aldeias ou mesmo na própria aldeia) ou como no caso, o inimigo recebia
as honras dos antepassados que estes foram mortos por seu povo (do inimigo), em
troca ele daria sua vida, mas em troca teria uma morte honrosa e chegaria
livremente a terra sem mal.
O preparo
do cauim, as danças, e a “re-inimização”, iniciava o ritual sacrificial. As
aldeias aliadas iam chegando, o cativo sendo preparado. Na manhã seguinte ao
término do cauim[9],
iniciava-se uma outra fase do ritual: a morte. O matador vestido com uma capa
de penas vermelhas se comportava como uma ave de rapina e iniciava o diálogo
ritual. Esse diálogo era basicamente o matador justificando a morte da vítima,
ou seja, pela vingança e a vítima mostrava valentia, dizendo que sua morte seria
vingada. Alguns objetos eram entregues a vítima que poderia jogar na plateia, em
seguida a bordunada. O sangue, os órgãos e todas as partes da vítima eram
preparados, de formas diversas, para diferentes grupos. Por exemplo, as
mulheres ficavam destinadas uma espécie de sopa dos órgãos. O matador não come
nada de sua vítima, entra em resguardo, no qual se abstêm de certos alimentos,
é despossuído de seus bens, escarificado, tatuado e recebe um novo nome que só
será revelado num ritual de caiunagem, onde marca o fim do resguardo.
Enfim, poderíamos pensar que a vítima se
entregou a contragosto a morte, mas não é assim. Ao que pude perceber na
etnografia levantada, a vítima espera por essa morte, pois ela é heroica, sem
contar que, elimina a porção corruptível de si, o que faz com que vá direto
para a Terra sem mal. Era “digno e glorioso, da vida de um guerreiro consistir
em ser assimilado pelo corpo vivente do inimigo”[10].
A “má morte” era morrer de causa natural ou de doença, já a boa morte é servir
de alimento ao inimigo. E sua morte não ficaria isenta de vingança – o que
contribuiria para manter a necessidade vital da cultura Tupi, continuar
alimentando a própria cultura através da mí
[1] MOTA, Regina. Audiovisual, cultura e alteridade em Como era
gostoso o meu francês. Disponível em:
<http://www.fabricadofuturo.org.br/fabricav4/ear_arquivos/comoeragostoso.pdf>
Acesso em: 15/10/2013.
[2] Retirado do
Artigo de Mota.
[3] FARIAS, Juliana Barreto. Os Tupinambá sob a ótica feminina.
Disponível em: <http://www.ufrb.edu.br/cinecachoeira/2012/11/como-era-gostoso-o-meu-frances/>
Acesso em: 15/10/2013
[4] FAUSTO, Carlos. Fragmentos de História e Cultura Tupinambá.
Da etnologia como instrumento crítico de conhecimento etno-histórico. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manoela (Org).
História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria
Municipal de Cultura: FAPESP, 1992.p.388
[5] Os Tupiniquim, inimigos dos
Tupinambá, eram aliados dos Portugueses, logo eram vistos pelos Tupinambá como
inimigos também.
[7] AGNOLIM, Adone. Antropofagia
Ritual e identidade cultural entre os Tupinambá. In: Revista de
Antropologia Vol.45 nº 1. São Paulo, 2002.