quinta-feira, 26 de setembro de 2013

O Vale do (Aço) Rio Doce e seus índios

Infelizmente, muitos desconhecem a História dos Povos Indígenas, aliás, há os que pensam que eles estão presos no passado e que foram praticamente extintos. Tenho mostrado em vários posts que os Povos Indígenas ainda vivem, ainda possuem voz e ainda lutam por seus direitos. Infelizmente, alguns foram massacrados a tal ponto a serem realmente extintos. É o caso dos povos indígenas da região do Vale do Rio Doce, que se encontra ao leste de Minas Gerais. Conhecidos pejorativamente por “Botocudos”, esses indígenas possuíam denominações diversas e se reuniam em diferentes clãs que tinham uma mobilidade espacial incrível!
“Até o final do século XVIII, os “Botocudos” ficaram à vontade na mata do Rio Doce. Durante uns cento e tantos anos ficaram ali e a Coroa não tinha nada a ver com aquilo. Depois os brancos decidiram descer o cacete. Antes somente se interessavam pela madeira existente na mata.”







Até o início do século XX, muitos indígenas, principalmente na região que hoje se denomina “Vale do Aço”, ainda resistiam aos contatos com os não indígenas. Mas aos poucos, esses grupos foram desaparecendo. Felizmente, um dos grupos indígenas que eram tidos como “Botocudos” ainda resistem, os Krenak, residem na divisa entre o Espírito Santo e Minas. Possuem uma reserva e lá vivem e podem continuar vivendo sua cultura.
“Darcy Ribeiro apresentou esses índios [os Krenak] como extintos. Uma vez, quando ele era secretário de Cultura, do governo Brizola, fui visitá-lo com um grupo de guaranis no Rio de Janeiro. (...) entramos no gabinete do Darcy para cumprimentá-lo e ele perguntou como é que estávamos. Respondi: “Como você disse que nosso povo está extinto, um fantasma veio lhe visitar. Porque, pelo seu livro, estamos mortos. Quem está extinto não dá notícia”.
 
Os dois maiores troncos linguísticos dos indígenas brasileiros, atualmente, são: o macro tupi e o macro jê. Os “Botocudos” da região do leste mineiro encontram-se no tronco macro jê. Além da diferença da língua, os costumes também se diferenciam. Os tupi, por exemplo, eram mais amigáveis e abertos à novidade do que os jê, que eram muito resistentes aos novos contatos, principalmente com os europeus.
Em decorrência a esse fator, muitos indígenas desse tronco foram massacrados, foi o que aconteceu na região do Vale do Rio Doce. Quando em meados do século XIX começam a explorar o interior mineiro, há muitos embates entre indígenas e não indígenas. Fora as doenças trazidas, a violência contra os nativos eram agravantes, o “progresso” estabelecido pela coroa portuguesa não era se não o extermínio dos indígenas. Principalmente, dos “Botocudos” que eram, nas palavras dos colonizadores, bravos e arredios. Pois bem...por serem bravos e arredios, não sobravam-lhe outra alternativa: ou eles se entregavam para os colonizadores e então, serem aldeados para catequização e “desbrutalização” ou que usasse as formas mais violentas para poder “abrir caminhos ao progresso”.
“Durante trezentos anos, a região leste do Estado de Minas Gerais não podia ser devassada. A Coroa portuguesa impedia a passagem direta da região das minas até o litoral, para evitar o contrabando de ouro e diamantes. Criou-se, assim, o chamado “sertão do leste”. Com o esgotamento das minas, no fim do século XVIII, tornou-se indispensável derrubar e explorar a Mata Atlântica e exterminar os chamados índios “botocudos”, que enfrentavam os colonizadores. Houve, portanto, o genocídio dos índios. Atualmente, as comunidades indígenas estão renascendo e se fortalecendo, exigem respeito pela sua identidade étnica e o atendimento de suas necessidades.”


Características dos “Botocudos”[1]
  • Nômades
  • Não usavam vestimentas ou grafismos, apenas “botoques”, que são círculos de madeira que colocam nas orelhas e lábios inferiores (chegavam a 12cm de diâmetro). Com o contato com os brancos, os homens passaram a usar uma espécie de tanga, e as mulheres continuavam completamente nuas.
  • Casas muito simples, de folha de palmeira
  • Poligâmicos e paternalistas
  • Dormiam no chão
  • Caçadores e coletores
  • Seus arcos e flechas eram muito bem confeccionados, haviam 3 tipos de pontas de flechas, cada uma para um uso. Ornamentavam seus utensílios com goimbé (Guaimbê, uma espécie de planta/folhagem) e pintava-os com urucum.
  • Lógica do “meu”: ao contrário de várias etnias em que tudo é de todos, os botocudos apegavam-se a seus objetos e não se desfaziam dele para outrem.
  • O nome “Botocudo” foi dado a todos aqueles que utilizavam os botoques, entretanto, esses povos
    tinham suas denominações específicas, como Borun, Naknanuk, Pojixá, Nakre-ehé, Miñajirum, Jiporók, Gutkrák, entre outros.
  • Atualmente, o grupo remanescente dos Botocudos são os Krenak.
  • Pocrane foi um grande líder indígena que manteve contato com Guido Marliére, na época do exploração do Leste Mineiro. Alguns afirmam, que juntos tentaram diminuir toda a violência cometida aos indígenas, outros dizem que Marliére era um completo colonizador, sem se importar com os nativos.





  • Fontes para aprofundamento:
- biblioteca digital Curt Nimuendaju: http://biblio.etnolinguistica.org/

 
Os Fragmentos são da Entrevista de Ailton Krenak: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142009000100014&script=sci_arttext




[1] Gostaria de deixar claro que as características dos “Botocudos” ou dos povos Jê, quase em sua totalidade, não significa levar o pensamento para o entendimento de que eles eram selvagens ou rudimentares e sim que desenvolveram sua cultura de forma diferente dos demais. Já discutimos sobre isso no post: http://promessasdosol.blogspot.com.br/2013/06/sobre-o-etnocentrismo.html

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

O mito e o Rito*

*(análise do Artigo de Zannoni)



 Durante os rituais tenetehara, o ponto alto da festa é marcado pela penugem de gavião real colocada nas cabeças não só dos iniciados mas de todos os participantes do ritual. Um exemplo típico são os rituais de iniciação masculina e feminina quando, pela manhã, antes do alvorecer, as cabeças dos iniciados e parte dos seus corpos são enfeitados com as penas de gavião, a significar a chegada do sol. Assim, pode-se relacionar sem sombra de dúvida o gavião ao astro solar. Com sua imponência de vôo, ele representa a presença viva do sol na abóbada celeste. Podemos dizer, portanto, que este, além de Maíra (ZANNONI, 2002), para o mundo humano, é o paradigma do homem Tenetehara no mundo animal.
 
 


Para refletir sobre a concepção de que o simbolismo mítico e o simbolismo ritual estão intimamente ligados, Zannoni (2005) busca elucidar com o mito “Wira’i e o Bacurau”, dos povos Tenetehara.

Antes, porém, gostaria de buscar em Viveiros de Castro (1996) uma breve reflexão sobre a cosmovisão indígena. Viveiros de Castro percebeu que, seja qual for a etnia indígena americana, um entendimento sobre o mundo prevalece: não se separa a Natureza da Cultura. Ou seja, toda a Natureza vive sua Cultura, seja ela gente, seja ela animal ou, até mesmo, seja ela espiritual. Todos os seres possuem sua cosmovisão, tem capacidade de atribuir símbolos e significados, possuem sentimentos, vontades, crenças e rituais. Na academia, essa cosmovisão recebe um nome, “qualidade perspectiva” ou “relatividade perspectiva”. De qualquer forma, não é um simples conceito, pois para o indígena é como o mundo funciona. O mundo é.

Mas todo esse conhecimento e aptidão para perceber o mundo com este formato surge de onde? Como todas as construções culturais, os indígenas possuem mitos e crenças que antecedem a criação do mundo. E vão além. Em todos eles, todos os seres humanos e não-humanos estão presentes, se relacionando. Há também os mitos que contam como os animais foram perdendo os atributos humanos e como os “mundos” se dividiram, pelo menos a um primeiro momento. Porque mesmo em “mundos” diferentes, há quem possa fazer a grande conexão entre eles, a partir daí entra um personagem importantíssimo nas crenças ameríndias: o pajé ou xamã. É ele que, através de seus dons e rituais, irão continuar este contato direto com todas as outras almas de todos os mundos.

Os mitos são parte da sabedoria indígena e o que conduz a própria sociedade. Através dos mitos é que são fortalecidos os códigos de conduta, o sistema jurídico e os rituais. O rito e o mito se complementam, “sendo que o mito dá suporte ao ritual, cada vez que é celebrado, renova o mito” (Zannoni, 2005).  Sendo que, o mito manifestado em uma linguagem oral/literária e os rituais representam o mito numa linguagem “plástica”, através dos adornos, danças, músicas, comidas, etc.

As histórias passadas de geração em geração, representa, e muito, o pensamento vivo de um povo. Para concretizar o mito e vivênciá-lo há os rituais, sejam de passagem ou puramente religiosos. Nesse momento, a verdade mitológica se transforma em uma verdade real, que pode ser sentida, vivenciada e assim, o mito se renova.

Todos os aspectos e símbolos demonstrados em cada mito, tem significados importantes para a condição de existência de uma comunidade indígena e seu entendimento sobre o mundo.

Zannoni (2005) nos transcreve um mito Tenetehara, o “Wira’i e o Bacurau” e, logo em seguida, nos explica como entendê-lo e os importantes símbolos que aparecem para a cultura Tenetehara. Muitas vezes para nós, não indígenas, muitos mitos podem parecer uma história sem muito sentido e através de seu artigo, o autor nos demonstra que para compreender profundamente um mito é necessário conhecer os símbolos e o saber de uma determinada cultura.

Entendido o mito, concluímos que essa herança que os povos indígenas carregam, que são suas histórias míticas ou não, “determinam práticas simbólicas e estas se traduzem nas relações sociais” (Zannoni, 2005). Ou seja, os rituais e determinados comportamentos passam a existir dentro de uma sociedade. É importante dizer que esses rituais servem para fortalecer os laços sociais e podemos apreender os valores e padrãos comportamentais do grupo.

O mito estudado representa um ritual de passagem e a transformação do jovem rapaz em pajé. Após ter passado por muitas provações, Wira’i consegue vencer e voltar para sua casa, transformando a si mesmo e os familiares em pássaros, só um pajé poderia efetuar tal ato. Assim, a afirmativa de que “num episódio ritual, sempre se distinguem três estados – separação, margem, agragação” (Segalen, 2002) – é comprovada. Pois, primeiramente Wira’i foi retirado de seu lar, passou pela fase transitória de provações e ao final retorna a sua casa vencedor.

Com base em seus mitos, os Tenetehara – como outros povos indígenas – tem seus ritos de passagens, afinal, representação e ritual são indissociáveis e importantes para a preservação da unidade grupal.

O MITO
Um rapaz, de nome Wira'i, esgava passarinhando perto de casa. De repente, seguiu uma coruja que o desviou de seu caminho conhecido. Ele se perdeu. A coruja Bacurau, então, o engoliu com sua boca muito grande, e o levou para o outro lado de um rio enomrme que era por ele desconhecido.
O rapaz se encontrou sozinho e procurou achar um meio para atravessar o rio, mas em vão. Estava anoitecendo e o rapaz subiu num pau e começou a pensar no que fazer. De repente ouviu o canto de um pássaro: era uma coruja.
Pensou:“Se essa coruja fosse gente, ela poderia me levar do outro lado do rio”.
A coruja perguntou o que ele havia dito e respondeu-lhe que era muito pesado e não conseguiria. Outros pássaros vieram durante a noite, mas todos eles responderam a mesma coisa.
Pela manhã, ouviu o canto do pica-pau e outra vez pensou: “se o pica-pau fosse gente me carregaria para o outro lado do rio”.
O pica-pau se aproximou e lhe perguntou o que ele havia dito. Este falou, mas ouviu a mesma resposta de sempre. Mais tarde ouviu o canto do paturi. O paturi, desta vez, tentou levantar vôo com o rapaz, mas não conseguiu. Então disse que ele conhecia alguém que conseguiria atravessá-lo. No entanto, o rapaz deveria procurar não responder às perguntas que esse bicho ia lhe fazer, do contrário o bicho o comeria.
Pouco depois, o paturi voltou com um jacaré enorme, o qual carregava uma imbaúba nas costas, e se ofereceu para levá-lo. O rapaz saltou e se segurou no pé de imbaúba. De vez em quanto o jacaré perguntava alguma coisa para o rapaz, mas este não lhe respondia.
Ao chegar na outra margem, o jacaré disse que ele podia saltar para a terra, mas o rapaz pediu que ele o levasse mais perto da beira. Assim ele fez, e o rapaz aproveitou o momento melhor e pulou longe do rio, correndo, em seguida, para não ser alcançado pelo jacaré.
Logo adiante encontrou um socó, que o engoliu. Chegou o jacaré e perguntou-lhe se havia visto um rapaz fugindo. Esse disse que não e então o jacaré o acusou de tê-lo engolido. O socó disse que não e como prova disso, regurgitou alguns peixes que havia engolido vivos. Conformado, o jacaré voltou. O socó, então regurgitou o rapaz e disse-lhe que, se quisesse chegar à casa do pai, teria que sempre seguir o caminho.
À noite ele procura um abrigo debaixo de uma grande pedra. Pela manhã descobriu que não se tratava de pedra mas de um grande sapo cururu e foge. Para se alimentar comia toda fruta do mato: sapucaia, inajá e outras.
Mais adiante ele ouviu algo como alguém que estava pisando num pilão: era uma cutia que estava batendo o pé na porta de uma laje de pedra. Já era de tardezinha, e falou para a cutia lhe dar um fogo. Ela disse que não podia, porque quem mandava ali era uma grande jibóia, que morava junto com a cutia. Esta ficaria brava e iria comê-lo.
Ele entrou no buraco da cobra para pegar um tição e fazer fogo, para se esquentar de noite. A jibóia (moizuhu) tampou a porta, colocando-se à sua frente. O rapaz tentou sair, mas não podia. A cobra ameaçou engoli-lo. Naquele instante, Wira’i ouviu o canto do gavião: coan, coan, aí ele disse para a cobra que o gavião iria matá-la. Assim, a cobra saiu da porta e ele fugiu.
Adiante enxergou uma casa onde havia uma mulher sozinha. Esta lhe perguntou: o que você faz por aqui?
Estou há muito tempo procurando por meus pais, e não sei onde eles estão. A mulher, que era uma coelha (morotói), disse que ele deveria ficar com ela e trabalhar para ela. O rapaz aceitou. Mais tarde chegaram os caititus, que lhe ofereceram batata, inhame, macaxeira, milho assado, especialmente para engordar o rapaz que estava muito magro por causa da fome, e convidaram a coelha para ir com eles, pela manhã, até à roça.
Na manhã seguinte, às cinco horas, chamaram a coelha, mas ela não quis ir, porque estava com sono. Os dias se seguiram até que os caititus convidaram o rapaz a ir com eles até à roça: “rapaz, o que você faz com essa mulher aí? Ela vai te matar de fome! Nós vamos te indicar o caminho que leva até à casa de teu pai”.
Pela manhã, chamaram-no e ele se levantou depressa e os acompanhou. Estes foram até à roça, que era do pai do rapaz, e lhe indicaram o caminho para chegar até a casa dele.
Este, chegando, entrou no quarto e começou a mexer nas coisas. A mãe ouviu o barulho e foi até lá. Ela viu, reconheceu o filho e queria abraçá-lo. Mas ele disse que não podia. Em seguida chegou seu pai, que também reconheceu o filho, se aproximou dele e o abraçou. O filho entrou no corpo do pai, que ficou com duas cabeças conversando entre si.
O filho convidou o pai para ir embora daquele lugar. Aí, ele cantou três noites e dois dias e foram embora com as casas. Viraram passarinhos andando em bando como a andorinha, o recongo, o xexéu e foram embora para longe.

Referências:

CASTRO, Eduardo Viveiros de. Perspectivismo e Multinaturalismo na América Indígena. Mana, Rio de Janeiro.v.2n.2. p.225-254, 1996.

SEGALEN, Marine. A questão dos ritos de passagem. In: _____________. Ritos e rituais contemporâneos. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2002.

ZANNONI, Claudio. Simbolismo mítico e simbolismo ritual no mito “Wira’i e o Bacurau” In: Ciências Humanas em Revista - São Luís, V. 3, n.2:  dezembro 2005, Disponível em: http://www.nucleohumanidades.ufma.br/pastas/CHR/2005_2/claudio_zanoni_v3_n2.pdf Capturado em: 23 abr. 2012.