Durante os rituais tenetehara, o ponto alto da festa é marcado pela penugem de gavião real colocada nas cabeças não só dos iniciados mas de todos os participantes do ritual. Um exemplo típico são os rituais de iniciação masculina e feminina quando, pela manhã, antes do alvorecer, as cabeças dos iniciados e parte dos seus corpos são enfeitados com as penas de gavião, a significar a chegada do sol. Assim, pode-se relacionar sem sombra de dúvida o gavião ao astro solar. Com sua imponência de vôo, ele representa a presença viva do sol na abóbada celeste. Podemos dizer, portanto, que este, além de Maíra (ZANNONI, 2002), para o mundo humano, é o paradigma do homem Tenetehara no mundo animal.
Para
refletir sobre a concepção de que o simbolismo mítico e o simbolismo ritual
estão intimamente ligados, Zannoni (2005) busca elucidar com o mito “Wira’i e o
Bacurau”, dos povos Tenetehara.
Antes,
porém, gostaria de buscar em Viveiros de Castro (1996) uma breve reflexão sobre
a cosmovisão indígena. Viveiros de Castro percebeu que,
seja qual for a etnia indígena americana, um entendimento sobre o mundo
prevalece: não se separa a Natureza da Cultura. Ou seja, toda a Natureza vive
sua Cultura, seja ela gente, seja ela animal ou, até mesmo, seja ela
espiritual. Todos os seres possuem sua cosmovisão, tem capacidade de atribuir
símbolos e significados, possuem sentimentos, vontades, crenças e rituais. Na
academia, essa cosmovisão recebe um nome, “qualidade perspectiva” ou
“relatividade perspectiva”. De qualquer forma, não é um simples conceito, pois
para o indígena é como o mundo funciona. O mundo é.
Mas todo esse conhecimento e
aptidão para perceber o mundo com este formato surge de onde? Como todas as
construções culturais, os indígenas possuem mitos e crenças que antecedem a
criação do mundo. E vão além. Em todos eles, todos os seres humanos e
não-humanos estão presentes, se relacionando. Há também os mitos que contam
como os animais foram perdendo os atributos humanos e como os “mundos” se
dividiram, pelo menos a um primeiro momento. Porque mesmo em “mundos”
diferentes, há quem possa fazer a grande conexão entre eles, a partir daí entra
um personagem importantíssimo nas crenças ameríndias: o pajé ou xamã. É ele que,
através de seus dons e rituais, irão continuar este contato direto com todas as
outras almas de todos os mundos.
Os
mitos são parte da sabedoria indígena e o que conduz a própria sociedade. Através
dos mitos é que são fortalecidos os códigos de conduta, o sistema jurídico e os
rituais. O rito e o mito se complementam, “sendo que o mito dá suporte ao
ritual, cada vez que é celebrado, renova o mito” (Zannoni, 2005). Sendo que, o mito manifestado em uma linguagem
oral/literária e os rituais representam o mito numa linguagem “plástica”,
através dos adornos, danças, músicas, comidas, etc.
As
histórias passadas de geração em geração, representa, e muito, o pensamento
vivo de um povo. Para concretizar o mito e vivênciá-lo há os rituais, sejam de
passagem ou puramente religiosos. Nesse momento, a verdade mitológica se
transforma em uma verdade real, que pode ser sentida, vivenciada e assim, o
mito se renova.
Todos
os aspectos e símbolos demonstrados em cada mito, tem significados importantes para
a condição de existência de uma comunidade indígena e seu
entendimento sobre o mundo.
Zannoni
(2005) nos transcreve um mito Tenetehara, o “Wira’i e o Bacurau” e, logo em
seguida, nos explica como entendê-lo e os importantes símbolos que aparecem
para a cultura Tenetehara. Muitas vezes para nós, não indígenas, muitos mitos
podem parecer uma história sem muito sentido e através de seu artigo, o autor nos
demonstra que para compreender profundamente um mito é necessário conhecer os
símbolos e o saber de uma determinada cultura.
Entendido
o mito, concluímos que essa herança que os povos indígenas carregam, que são
suas histórias míticas ou não, “determinam práticas simbólicas e estas se
traduzem nas relações sociais” (Zannoni, 2005). Ou seja, os rituais e
determinados comportamentos passam a existir dentro de uma sociedade. É importante
dizer que esses rituais servem para fortalecer os laços sociais e podemos
apreender os valores e padrãos comportamentais do grupo.
O
mito estudado representa um ritual de passagem e a transformação do jovem rapaz
em pajé. Após ter passado por muitas provações, Wira’i consegue vencer e voltar
para sua casa, transformando a si mesmo e os familiares em pássaros, só um pajé
poderia efetuar tal ato. Assim, a afirmativa de que “num episódio ritual,
sempre se distinguem três estados – separação, margem, agragação” (Segalen,
2002) – é comprovada. Pois, primeiramente Wira’i foi retirado de seu lar,
passou pela fase transitória de provações e ao final retorna a sua casa
vencedor.
Com
base em seus mitos, os Tenetehara – como outros povos indígenas – tem seus ritos
de passagens, afinal, representação e ritual são indissociáveis e importantes
para a preservação da unidade grupal.
O rapaz se encontrou sozinho e
procurou achar um meio para atravessar o rio, mas em vão. Estava anoitecendo e
o rapaz subiu num pau e começou a pensar no que fazer. De repente ouviu o canto
de um pássaro: era uma coruja.
Pensou:“Se essa coruja fosse
gente, ela poderia me levar do outro lado do rio”.
A coruja perguntou o que ele
havia dito e respondeu-lhe que era muito pesado e não conseguiria. Outros
pássaros vieram durante a noite, mas todos eles responderam a mesma coisa.
Pela manhã, ouviu o canto do
pica-pau e outra vez pensou: “se o pica-pau fosse gente me carregaria para o
outro lado do rio”.
O pica-pau se aproximou e lhe
perguntou o que ele havia dito. Este falou, mas ouviu a mesma resposta de
sempre. Mais tarde ouviu o canto do paturi. O paturi, desta vez, tentou
levantar vôo com o rapaz, mas não conseguiu. Então disse que ele conhecia alguém
que conseguiria atravessá-lo. No entanto, o rapaz deveria procurar não
responder às perguntas que esse bicho ia lhe fazer, do contrário o bicho o
comeria.
Pouco depois, o paturi voltou com
um jacaré enorme, o qual carregava uma imbaúba nas costas, e se ofereceu para
levá-lo. O rapaz saltou e se segurou no pé de imbaúba. De vez em quanto o
jacaré perguntava alguma coisa para o rapaz, mas este não lhe respondia.
Ao chegar na outra margem, o
jacaré disse que ele podia saltar para a terra, mas o rapaz pediu que ele o
levasse mais perto da beira. Assim ele fez, e o rapaz aproveitou o momento
melhor e pulou longe do rio, correndo, em seguida, para não ser alcançado pelo
jacaré.
Logo adiante encontrou um socó,
que o engoliu. Chegou o jacaré e perguntou-lhe se havia visto um rapaz fugindo.
Esse disse que não e então o jacaré o acusou de tê-lo engolido. O socó disse
que não e como prova disso, regurgitou alguns peixes que havia engolido vivos.
Conformado, o jacaré voltou. O socó, então regurgitou o rapaz e disse-lhe que,
se quisesse chegar à casa do pai, teria que sempre seguir o caminho.
À noite ele procura um abrigo
debaixo de uma grande pedra. Pela manhã descobriu que não se tratava de pedra
mas de um grande sapo cururu e foge. Para se alimentar comia toda fruta do
mato: sapucaia, inajá e outras.
Mais adiante ele ouviu algo como
alguém que estava pisando num pilão: era uma cutia que estava batendo o pé na
porta de uma laje de pedra. Já era de tardezinha, e falou para a cutia lhe dar
um fogo. Ela disse que não podia, porque quem mandava ali era uma grande
jibóia, que morava junto com a cutia. Esta ficaria brava e iria comê-lo.
Ele entrou no buraco da cobra
para pegar um tição e fazer fogo, para se esquentar de noite. A jibóia (moizuhu) tampou a porta, colocando-se
à sua frente. O rapaz tentou sair, mas não podia. A cobra ameaçou engoli-lo.
Naquele instante, Wira’i ouviu
o canto do gavião: coan, coan, aí ele disse para a cobra que o gavião iria
matá-la. Assim, a cobra saiu da porta e ele fugiu.
Adiante enxergou uma casa onde
havia uma mulher sozinha. Esta lhe perguntou: o que você faz por aqui?
Estou há muito tempo procurando
por meus pais, e não sei onde eles estão. A mulher, que era uma coelha (morotói), disse que ele deveria ficar
com ela e trabalhar para ela. O rapaz aceitou. Mais tarde chegaram os caititus,
que lhe ofereceram batata, inhame, macaxeira, milho assado, especialmente para
engordar o rapaz que estava muito magro por causa da fome, e convidaram a
coelha para ir com eles, pela manhã, até à roça.
Na manhã seguinte, às cinco
horas, chamaram a coelha, mas ela não quis ir, porque estava com sono. Os dias
se seguiram até que os caititus convidaram o rapaz a ir com eles até à roça:
“rapaz, o que você faz com essa mulher aí? Ela vai te matar de fome! Nós vamos
te indicar o caminho que leva até à casa de teu pai”.
Pela manhã, chamaram-no e ele se
levantou depressa e os acompanhou. Estes foram até à roça, que era do pai do
rapaz, e lhe indicaram o caminho para chegar até a casa dele.
Este, chegando, entrou no quarto
e começou a mexer nas coisas. A mãe ouviu o barulho e foi até lá. Ela viu,
reconheceu o filho e queria abraçá-lo. Mas ele disse que não podia. Em seguida
chegou seu pai, que também reconheceu o filho, se aproximou dele e o abraçou. O
filho entrou no corpo do pai, que ficou com duas cabeças conversando entre si.
O filho convidou o pai para ir embora daquele
lugar. Aí, ele cantou três noites e dois dias e foram embora com as casas.
Viraram passarinhos andando em bando como a andorinha, o recongo, o xexéu e
foram embora para longe.
Referências:
Referências:
CASTRO, Eduardo
Viveiros de. Perspectivismo e
Multinaturalismo na América Indígena. Mana, Rio de Janeiro.v.2n.2. p.225-254, 1996.
SEGALEN,
Marine. A questão dos ritos de passagem.
In: _____________. Ritos e rituais
contemporâneos. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2002.
ZANNONI, Claudio. Simbolismo
mítico e simbolismo ritual no mito “Wira’i e o Bacurau” In: Ciências
Humanas em Revista - São Luís, V. 3, n.2: dezembro 2005, Disponível em: http://www.nucleohumanidades.ufma.br/pastas/CHR/2005_2/claudio_zanoni_v3_n2.pdf
Capturado
em: 23 abr. 2012.
Gostei do artigo, muito interessante e ao ler a estória soube do que vc fala, mas gostaria de entender a simbologia e do que fala a fábula contada.
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