sexta-feira, 20 de setembro de 2013

O mito e o Rito*

*(análise do Artigo de Zannoni)



 Durante os rituais tenetehara, o ponto alto da festa é marcado pela penugem de gavião real colocada nas cabeças não só dos iniciados mas de todos os participantes do ritual. Um exemplo típico são os rituais de iniciação masculina e feminina quando, pela manhã, antes do alvorecer, as cabeças dos iniciados e parte dos seus corpos são enfeitados com as penas de gavião, a significar a chegada do sol. Assim, pode-se relacionar sem sombra de dúvida o gavião ao astro solar. Com sua imponência de vôo, ele representa a presença viva do sol na abóbada celeste. Podemos dizer, portanto, que este, além de Maíra (ZANNONI, 2002), para o mundo humano, é o paradigma do homem Tenetehara no mundo animal.
 
 


Para refletir sobre a concepção de que o simbolismo mítico e o simbolismo ritual estão intimamente ligados, Zannoni (2005) busca elucidar com o mito “Wira’i e o Bacurau”, dos povos Tenetehara.

Antes, porém, gostaria de buscar em Viveiros de Castro (1996) uma breve reflexão sobre a cosmovisão indígena. Viveiros de Castro percebeu que, seja qual for a etnia indígena americana, um entendimento sobre o mundo prevalece: não se separa a Natureza da Cultura. Ou seja, toda a Natureza vive sua Cultura, seja ela gente, seja ela animal ou, até mesmo, seja ela espiritual. Todos os seres possuem sua cosmovisão, tem capacidade de atribuir símbolos e significados, possuem sentimentos, vontades, crenças e rituais. Na academia, essa cosmovisão recebe um nome, “qualidade perspectiva” ou “relatividade perspectiva”. De qualquer forma, não é um simples conceito, pois para o indígena é como o mundo funciona. O mundo é.

Mas todo esse conhecimento e aptidão para perceber o mundo com este formato surge de onde? Como todas as construções culturais, os indígenas possuem mitos e crenças que antecedem a criação do mundo. E vão além. Em todos eles, todos os seres humanos e não-humanos estão presentes, se relacionando. Há também os mitos que contam como os animais foram perdendo os atributos humanos e como os “mundos” se dividiram, pelo menos a um primeiro momento. Porque mesmo em “mundos” diferentes, há quem possa fazer a grande conexão entre eles, a partir daí entra um personagem importantíssimo nas crenças ameríndias: o pajé ou xamã. É ele que, através de seus dons e rituais, irão continuar este contato direto com todas as outras almas de todos os mundos.

Os mitos são parte da sabedoria indígena e o que conduz a própria sociedade. Através dos mitos é que são fortalecidos os códigos de conduta, o sistema jurídico e os rituais. O rito e o mito se complementam, “sendo que o mito dá suporte ao ritual, cada vez que é celebrado, renova o mito” (Zannoni, 2005).  Sendo que, o mito manifestado em uma linguagem oral/literária e os rituais representam o mito numa linguagem “plástica”, através dos adornos, danças, músicas, comidas, etc.

As histórias passadas de geração em geração, representa, e muito, o pensamento vivo de um povo. Para concretizar o mito e vivênciá-lo há os rituais, sejam de passagem ou puramente religiosos. Nesse momento, a verdade mitológica se transforma em uma verdade real, que pode ser sentida, vivenciada e assim, o mito se renova.

Todos os aspectos e símbolos demonstrados em cada mito, tem significados importantes para a condição de existência de uma comunidade indígena e seu entendimento sobre o mundo.

Zannoni (2005) nos transcreve um mito Tenetehara, o “Wira’i e o Bacurau” e, logo em seguida, nos explica como entendê-lo e os importantes símbolos que aparecem para a cultura Tenetehara. Muitas vezes para nós, não indígenas, muitos mitos podem parecer uma história sem muito sentido e através de seu artigo, o autor nos demonstra que para compreender profundamente um mito é necessário conhecer os símbolos e o saber de uma determinada cultura.

Entendido o mito, concluímos que essa herança que os povos indígenas carregam, que são suas histórias míticas ou não, “determinam práticas simbólicas e estas se traduzem nas relações sociais” (Zannoni, 2005). Ou seja, os rituais e determinados comportamentos passam a existir dentro de uma sociedade. É importante dizer que esses rituais servem para fortalecer os laços sociais e podemos apreender os valores e padrãos comportamentais do grupo.

O mito estudado representa um ritual de passagem e a transformação do jovem rapaz em pajé. Após ter passado por muitas provações, Wira’i consegue vencer e voltar para sua casa, transformando a si mesmo e os familiares em pássaros, só um pajé poderia efetuar tal ato. Assim, a afirmativa de que “num episódio ritual, sempre se distinguem três estados – separação, margem, agragação” (Segalen, 2002) – é comprovada. Pois, primeiramente Wira’i foi retirado de seu lar, passou pela fase transitória de provações e ao final retorna a sua casa vencedor.

Com base em seus mitos, os Tenetehara – como outros povos indígenas – tem seus ritos de passagens, afinal, representação e ritual são indissociáveis e importantes para a preservação da unidade grupal.

O MITO
Um rapaz, de nome Wira'i, esgava passarinhando perto de casa. De repente, seguiu uma coruja que o desviou de seu caminho conhecido. Ele se perdeu. A coruja Bacurau, então, o engoliu com sua boca muito grande, e o levou para o outro lado de um rio enomrme que era por ele desconhecido.
O rapaz se encontrou sozinho e procurou achar um meio para atravessar o rio, mas em vão. Estava anoitecendo e o rapaz subiu num pau e começou a pensar no que fazer. De repente ouviu o canto de um pássaro: era uma coruja.
Pensou:“Se essa coruja fosse gente, ela poderia me levar do outro lado do rio”.
A coruja perguntou o que ele havia dito e respondeu-lhe que era muito pesado e não conseguiria. Outros pássaros vieram durante a noite, mas todos eles responderam a mesma coisa.
Pela manhã, ouviu o canto do pica-pau e outra vez pensou: “se o pica-pau fosse gente me carregaria para o outro lado do rio”.
O pica-pau se aproximou e lhe perguntou o que ele havia dito. Este falou, mas ouviu a mesma resposta de sempre. Mais tarde ouviu o canto do paturi. O paturi, desta vez, tentou levantar vôo com o rapaz, mas não conseguiu. Então disse que ele conhecia alguém que conseguiria atravessá-lo. No entanto, o rapaz deveria procurar não responder às perguntas que esse bicho ia lhe fazer, do contrário o bicho o comeria.
Pouco depois, o paturi voltou com um jacaré enorme, o qual carregava uma imbaúba nas costas, e se ofereceu para levá-lo. O rapaz saltou e se segurou no pé de imbaúba. De vez em quanto o jacaré perguntava alguma coisa para o rapaz, mas este não lhe respondia.
Ao chegar na outra margem, o jacaré disse que ele podia saltar para a terra, mas o rapaz pediu que ele o levasse mais perto da beira. Assim ele fez, e o rapaz aproveitou o momento melhor e pulou longe do rio, correndo, em seguida, para não ser alcançado pelo jacaré.
Logo adiante encontrou um socó, que o engoliu. Chegou o jacaré e perguntou-lhe se havia visto um rapaz fugindo. Esse disse que não e então o jacaré o acusou de tê-lo engolido. O socó disse que não e como prova disso, regurgitou alguns peixes que havia engolido vivos. Conformado, o jacaré voltou. O socó, então regurgitou o rapaz e disse-lhe que, se quisesse chegar à casa do pai, teria que sempre seguir o caminho.
À noite ele procura um abrigo debaixo de uma grande pedra. Pela manhã descobriu que não se tratava de pedra mas de um grande sapo cururu e foge. Para se alimentar comia toda fruta do mato: sapucaia, inajá e outras.
Mais adiante ele ouviu algo como alguém que estava pisando num pilão: era uma cutia que estava batendo o pé na porta de uma laje de pedra. Já era de tardezinha, e falou para a cutia lhe dar um fogo. Ela disse que não podia, porque quem mandava ali era uma grande jibóia, que morava junto com a cutia. Esta ficaria brava e iria comê-lo.
Ele entrou no buraco da cobra para pegar um tição e fazer fogo, para se esquentar de noite. A jibóia (moizuhu) tampou a porta, colocando-se à sua frente. O rapaz tentou sair, mas não podia. A cobra ameaçou engoli-lo. Naquele instante, Wira’i ouviu o canto do gavião: coan, coan, aí ele disse para a cobra que o gavião iria matá-la. Assim, a cobra saiu da porta e ele fugiu.
Adiante enxergou uma casa onde havia uma mulher sozinha. Esta lhe perguntou: o que você faz por aqui?
Estou há muito tempo procurando por meus pais, e não sei onde eles estão. A mulher, que era uma coelha (morotói), disse que ele deveria ficar com ela e trabalhar para ela. O rapaz aceitou. Mais tarde chegaram os caititus, que lhe ofereceram batata, inhame, macaxeira, milho assado, especialmente para engordar o rapaz que estava muito magro por causa da fome, e convidaram a coelha para ir com eles, pela manhã, até à roça.
Na manhã seguinte, às cinco horas, chamaram a coelha, mas ela não quis ir, porque estava com sono. Os dias se seguiram até que os caititus convidaram o rapaz a ir com eles até à roça: “rapaz, o que você faz com essa mulher aí? Ela vai te matar de fome! Nós vamos te indicar o caminho que leva até à casa de teu pai”.
Pela manhã, chamaram-no e ele se levantou depressa e os acompanhou. Estes foram até à roça, que era do pai do rapaz, e lhe indicaram o caminho para chegar até a casa dele.
Este, chegando, entrou no quarto e começou a mexer nas coisas. A mãe ouviu o barulho e foi até lá. Ela viu, reconheceu o filho e queria abraçá-lo. Mas ele disse que não podia. Em seguida chegou seu pai, que também reconheceu o filho, se aproximou dele e o abraçou. O filho entrou no corpo do pai, que ficou com duas cabeças conversando entre si.
O filho convidou o pai para ir embora daquele lugar. Aí, ele cantou três noites e dois dias e foram embora com as casas. Viraram passarinhos andando em bando como a andorinha, o recongo, o xexéu e foram embora para longe.

Referências:

CASTRO, Eduardo Viveiros de. Perspectivismo e Multinaturalismo na América Indígena. Mana, Rio de Janeiro.v.2n.2. p.225-254, 1996.

SEGALEN, Marine. A questão dos ritos de passagem. In: _____________. Ritos e rituais contemporâneos. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2002.

ZANNONI, Claudio. Simbolismo mítico e simbolismo ritual no mito “Wira’i e o Bacurau” In: Ciências Humanas em Revista - São Luís, V. 3, n.2:  dezembro 2005, Disponível em: http://www.nucleohumanidades.ufma.br/pastas/CHR/2005_2/claudio_zanoni_v3_n2.pdf Capturado em: 23 abr. 2012.

Um comentário:

  1. Gostei do artigo, muito interessante e ao ler a estória soube do que vc fala, mas gostaria de entender a simbologia e do que fala a fábula contada.

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